quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

MARINA SILVA NAS PÁGINAS VERMELHAS

Em entrevista a revista TPM a senadora, Marina Silva (PV-AC) fala sobre sua infância no seringal, família, preconceito, religião, aborto e como ingressou na política. Ela afirma que é determinada e uma pessoa movida pela fé.

Marina Silva diz que muitas pessoas sempre deram apoio a ela e que a educação foi a fresta por onde entrou. Também fala porque deixou o PT após três décadas militando e diz que o Brasil está preparado para eleger uma mulher, porque já elegeu um sociólogo, um metalúrgico. Confira entrevista concedida ao jornalista Fernando Luna.

Tpm. O Brasil está pronto para eleger uma mulher presidente?

Marina Silva. Se já elegeu um sociólogo e um metalúrgico, está pronto pra eleger uma mulher.

O país não é muito machista para isso?

Mas é também muito ousado. A sociedade brasileira é capaz de se colocar à frente de seus próprios preconceitos.

A senhora é mulher, negra, tem uma origem pobre e é evangélica. Já sofreu preconceito por ser mulher?

Às vezes as pessoas usam isso até para se promover... [Ri] Mas não sofri, não. Pelo contrário, era uma vantagem. Ameaçavam o [líder ambientalista assassinado em 1988] Chico Mendes, e eu, que fazia as mesmas coisas e tinha as mesmas lutas, nunca fui ameaçada. É bom quando as pessoas não ficam tão preocupadas com você, deixam você trabalhar. Faça e aconteça, depois as pessoas vão perceber.

Já sofreu preconceito por ser negra?

Não. Venho de uma realidade bem diferente: minha mãe era branca, mas era apaixonada por meu pai, negro. E ela era uma matriarca. Fui descobrir o preconceito contra a mulher e contra o negro na cidade.

Por ser pobre?

Não.

Nem quando trabalhou como doméstica?

Não. As pessoas me respeitavam, me acolhiam. Nunca fui de me colocar no lugar de vítima nem de ficar confrontando as pessoas. Senti preconceito por ser excluída entre os excluídos: “Ah, a Marina é seringueira, é filha de seringueiro”. Quando fui fazer minha identidade, a mulher não queria que colocasse que nasci no seringal Bagaço. Era feio dizer que nasci lá. “Minha filha, você já tá morando aqui, diga que é da cidade...” Fiz ela botar o Bagaço.

Sofreu preconceito por ser evangélica?

Isso sim. As pessoas têm uma visão preconcebida... Obviamente tem base de realidade, mas preconceito é quando você generaliza uma coisa: se você é evangélico, é conservador. Algumas pessoas, até amigas, já falaram: “Achava você tão inteligente, como pode ser da Assembleia de Deus?”.

O que a senhora responde?

Sorrio para elas.

Parte desse preconceito vem da atuação controversa de muitas igrejas evangélicas, especialmente em relação ao dízimo.

O dízimo é instituído biblicamente para os que creem e professam essa fé. Tem que ser um ato espontâneo do dizimista, correto?

Mas há muita forçação...

[Interrompe] É isso que estou dizendo. A própria palavra de Deus diz que não pode haver constrangimento. Mas as igrejas são formadas por seres humanos, com falhas, como em todos os lugares.

Como lida com as próprias imperfeições?

Lido de maneira imperfeita, manejando cada uma delas...

E com seus limites, as doenças a ensinaram a lidar com eles?

Me ensinaram a valorizar muito a vida, uma linha muito tênue, muito frágil. A gente não pode se colocar num lugar de onipotência. A gente tem que se conectar com a potência da vida.

Quando ficou doente pela primeira vez?

Leishmaniose tive com uns 4 anos de idade. Malária, com uns 5. Depois dos 13 anos, peguei outras malárias. Também tive hepatites.

Não devia ser fácil se recuperar no meio da floresta, sem recursos.

Na minha casa se adoeceu muito pouco. Isso até os meus 13 anos, quando passou a BR-364. A retirada da floresta levou a um surto de malária. Junto com o sarampo, foi uma guerra biológica. Nesse período, perdi duas irmãs, perdi meu tio [faz uma pausa]... Perdi minha avó, meu primo e, seis meses depois, a minha mãe morreu de aneurisma.

Foi uma morte repentina.

Ninguém esperava. Ela ficou com uma dor de cabeça às quatro da tarde e, no outro dia, às oito da noite, morreu. Como estava tendo um surto de meningite, e uma irmã minha já havia pegado, os médicos supuseram que era meningite. Não deixaram trazer o corpo. Do hospital, ela já foi pro necrotério. Ninguém viu.

Não foi ao enterro?

Não. Vimos ela sair de casa e nunca mais.

Qual a última lembrança dela?

[Silêncio] Meu pai tava fazendo uma casa nova. Minha mãe sonhava em ter uma casa coberta de cavaco [lascas de madeira], em vez de palha de jaci ou urucuri, que dava muito rato e barata. Ela já tava com um pouco de dor de cabeça. Amarrou um pano com rodelas de mandioca em torno da cabeça, e tava entregando os cavacos pro meu pai, que tava em cima da casa, empilhando os cavacos. De repente, ela falou: “Agora tá ficando tudo escuro”. Ele desceu rapidinho e já levou ela pro quarto. Ela começou a gritar com muita dor de cabeça. Meu pai pediu pro meu primo ir pra beira da estrada. Ele ficou lá um tempão, até que passou um caminhão. A sorte é que tava no verão, no inverno demorava às vezes quatro dias pra chegar a Rio Branco. Meu primo foi atrás desse caminhão, voltou num táxi e levou minha mãe, meu pai e minha irmã mais velha. Aí, nunca mais a vimos.

Isso a obrigou a amadurecer mais rápido, a assumir a casa?

Tinha minha irmã mais velha, mas ela casou um ano depois. Eu era uma dona de casa simbólica. Fiquei doente, não conseguia mais trabalhar, nem conseguia fazer comida.

Chegou a ser desenganada pelos médicos?

Algumas vezes, mas nunca acreditei. A primeira vez, aos 16 anos: cheguei doente na cidade, muito frágil, muito amarela. Estava com hepatite, mas acharam que era malária. Foi uma coisa devastadora. O médico me olhou e disse: “Essa aí já tá com a alma no inferno há muito tempo”. Nunca me esqueço do único remédio que ele passou pra mim: um vidro de Eparema. Peguei hepatite de novo, em 79. Novamente ouvi o médico dizer que dessa vez seria muito difícil, que podia ser uma cirrose, que não tinha jeito... Na gravidez da minha mais nova, que hoje tem 17 anos, estava muito doente...

Como foram seus partos?

Dois naturais, um a fórceps e uma cesariana. A fórceps foi muito difícil, mas não aconteceu nada com a minha filha. Na cesárea é que eu estava muito doente. Corria risco de morte, fui até meu limite. Quando completou oito meses, meu obstetra falou: “A criança está ótima, vamos tirar agora”. Ela nasceu com 3,2 quilos e eu pesava 47 quilos [Marina mede 1,65 metro].

Onde foi seu primeiro parto?

Numa maternidade mesmo, como indigente. Era como chamavam quem não tinha INPS, quem não tinha nada. Como era indigente, não podia ter visita. Na época, eu fazia parte de um grupo de teatro. Meus amigos foram me ver. Sabe como é artista, né? O primeiro que veio falou que era meu marido. Tudo bem, entrou. Daí chega outro e também diz que é o marido. Entrou. Quando foi seis da tarde, o meu marido chegou. Ele trabalhava fora, e não existia celular para avisar... Aí a enfermeira não aguentou e me descascou: “Minha filha, que tanto marido é esse?!” [risos].

A senhora já fez aborto?

Não, não.

O que acha da legislação?

Existe uma legislação consolidada, que permite o aborto em alguns casos, como estupro, risco para mãe e algumas questões envolvendo o feto. Do ponto de vista pessoal, me coloco em uma posição contrária ao aborto.

Não deveria ser legal a mulher decidir abortar ou não?

Isso tem uma complexidade muito grande. Envolve aspectos culturais, filosóficos e espirituais. Numa questão como essa o adequado talvez seja fazer um plebiscito. Não será o presidente que irá, por decreto ou por qualquer atitude, resolver uma coisa dessas.

A senhora tem um sinal no nariz.

É da leishmaniose. É uma úlcera de pele. Apareceu em menos de dois dias, muito rápido. Conheci pessoas que ficaram extremamente deformadas, e até pessoas que foram a óbito. Na época, para curar precisava de um remédio muito tóxico, à base de antimônio. Até a casa aviadora, de onde vinham as coisas que a gente não era capaz de produzir, como remédios, sal e munição, dava 11 horas de viagem a pé. Quando peguei a doença, meu pai andou 11 horas até lá e voltou caminhando outras 11 horas, com o remédio. Quando chegou, estava tão cansado que, nunca me esqueço, deitou no chão de casa com os braços para trás, todo sujo de lama do varadouro. Tomei 45 injeções para sarar isso aqui.

Alguma sequela?

Apareceu uma contaminação de mercúrio. Os médicos acham que o antimônio da vacina apareceu na forma de mercúrio. Me criou problemas de visão, no pâncreas, nos rins... Mas fiz tratamento de desintoxicação por muito tempo, em São Paulo, nos EUA. Depois, fiz uns exames na Fundação Evandro Chagas e o nível de contaminação estava abaixo do que prescreve a Organização Mundial da Saúde.

A senhora considera que teve uma infância dura?

Era dura, mas a gente funciona pela dualidade. Não tinha contato com pessoas ricas, só com pessoas semelhantes à gente. Então, ficava difícil reclamar se a vida de quem estava ao lado era parecida com a sua. Sabia que era dura no sentido de trabalhar no roçado, de cortar seringa. Mas eu e minhas irmãs trabalhávamos brincando. Não era um trabalho forçado, era um trabalho necessário, que fazia parte da ajuda à família, da aprendizagem... Tinha muita diversão. Correr e brincar no igarapé, escutar o teatrinho infantil às seis horas da tarde no rádio... Eu ficava fascinada pelas radionovelas da [rádio] Rio Mar, da Ivani Ribeiro.

O que aprendeu com as radionovelas?

Aprendi a falar. Ia vendo que aquela língua da novela era diferente da nossa. Eles falavam “colher”, a gente falava “cuié”. Comecei a achar que nós estávamos errados e a falar como nas novelas. Minha mãe brigava comigo: “Marina é metida, tá falando língua de gente besta da cidade” [risos].

O que aconteceu de diferente na sua trajetória que a fez sair do seringal e virar senadora?

Sou movida a fé e determinação. Tem a marca do indivíduo, mas tem também uma série de pessoas que te apoiam. O que fez a diferença na minha vida foi a educação. Educação foi a fresta por onde entrei.

Imagino que não esteja se referindo só à educação formal.

Não, não. Mas a educação formal foi a fresta. Fiz Mobral [curso de alfabetização] com 16 anos, depois supletivo... Talvez tenha sido tão bem aproveitada porque na minha vida havia uma estrutura organizada. A aprendizagem que tive no universo da floresta era de muita brincadeira, fundamental pro indivíduo... Minha avó era católica e eu, desde criancinha, tinha o sonho de ser freira. Ela dizia: “Freira não pode ser analfabeta”. Aquilo ficou como um obstáculo pra mim.

Por isso resolveu estudar?

É.

Seus irmãos também queriam estudar?

Não era assim. Não tinha escola, ninguém mandava os filhos pra cidade. Educar era passar os valores da família e, ao mesmo tempo, ensinar a viver na floresta. Sendo que as mulheres eram sempre educadas pra ajudar a cuidar do roçado e da casa. Mas, no nosso caso, em função do matriarcado da nossa mãe, aprendemos também a cortar seringa e a fazer os ofícios dos homens... Quando o homem manda, é natural. Quando a mulher tem um protagonismo, parece que fragiliza o homem. Não devia ser assim. O matriarcado não retira o lugar do homem. Só dá à mulher um lugar da governança.

Mulher governa de maneira diferente?

Completamente diferente. Ela movimenta todas as peças da casa. O homem acha que, se ele dá ordem pra mulher, a ordem baixa, já deve estar subentendida pros filhos. É mais verticalizado. As mulheres vão de uma forma mais sistêmica, horizontal.

Por que a senhora quer ser presidente?

Ser presidente é contribuir para que as boas ideias se transformem em políticas públicas. O maior desafio do Brasil é ter um desenvolvimento sustentável, capaz de garantir às pessoas qualidade de vida, saúde, educação, habitação, entretenimento, conhecimento e inovação tecnológica sem destruir as bases naturais, a biodiversidade, os recursos hídricos, a terra fértil, enfim, todas as condições naturais que nós temos.

As eleições de 2010 são apenas um ensaio ou a senhora acredita que pode vencer?

Tenho chance real de ganhar, não é apenas um ensaio.

Mesmo num partido pequeno como o PV?

Se tivesse olhado para estrutura, nunca teria ajudado a criar a estrutura que o PT tem hoje no Acre... São 30 anos de luta socioambiental no Brasil. A internet vai ter um papel importante, sobretudo para aqueles que, como eu, não têm muito tempo de televisão. Espero que possa fazer diferença.

Muita gente afirma que a senhora só tem um assunto, meio ambiente.

Não dá mais para fazer essa compartimentalização. As coisas estão integradas. É um engano achar que uma economia descarbonizada é só uma bandeira de ambientalista. Tem que ser bandeira de empresários, de formadores de opinião, de cientistas, de políticos e de não políticos.

Com a sociedade mais organizada, a política convencional ficou menos relevante?

Depende. Os partidos estão cada vez mais relevantes, infelizmente, como máquinas de ganhar poder. Mas estão cada vez mais retraídos como espaço para discutir ideias, projetos, visão de mundo, visão de país.

Se o poder está em um lugar e as ideias em outro, como juntar os dois?

Reelaborando o papel dos partidos. Os partidos não podem ter a pretensão de hegemonizar a sociedade. Existem pessoas que dão contribuições políticas, mas não querem estar em partidos. São os núcleos vivos da sociedade. Os partidos têm que aprender a se relacionar com esses núcleos. É mais um processo de coautoria do que de hegemonia de ideias.

Como está se preparando para enfrentar uma campanha presidencial?

A preparação é algo que você tem que ter adquirido ao longo da vida. Essa trajetória é que será colocada à prova. Gosto muito da ideia de que “boa madeira não cresce em sossego”. Diz que quanto mais fortes os ventos, mais fortes as árvores.

O que os seus filhos e o seu marido pensam da sua candidatura?

Não é fácil, mas eles têm sido muito acolhedores e parceiros. Com inseguranças, também.

Pelo jogo sujo que costuma haver nas campanhas?

Eu era uma das pessoas escaladas para responder às queimações contra o Lula. Era muito pesado. Já era difícil me ver na berlinda defendendo o Lula dos preconceitos, “e agora como é que vai ser em relação a você, mamãe?”... Tento me colocar como uma pessoa que aprendeu muito com o sofrimento que tivemos dentro do PT nos últimos anos. Vi pessoas de quem gostava e que respeitava sendo desconstruídas.

A senhora acha que foram tratadas injustamente?

Em alguns casos, não tinham sequer a oportunidade de colocar a sua visão... Algumas pessoas erraram, foram erros graves, e devem responder por eles.

O que restou da sua relação com Luiz Gushiken, José Genoino, José Dirceu?

Não temos mais contato, ficou um certo distanciamento. Mas não alimento a execração dessas pessoas. Genoino foi muito importante na minha vida, e lamento as coisas que aconteceram com ele. O que desejo é que tudo possa ser esclarecido com justiça.

A senhora não deveria ter se pronunciado com mais veemência na época do Mensalão?

Me pronunciei nos espaços em que podia me pronunciar. Mas nunca coloquei que saí do PT em função daquilo.

Como foi a saída do PT?

Foi doloroso para mim. Saí pelas mesmas razões pelas quais fiquei tanto tempo. Para lutar pela minha causa, pela causa que tem que ser de todos os brasileiros, de todo o planeta: o desenvolvimento sustentável. Que, infelizmente, no PT ainda não foi assimilada.

Além de sair do PT, onde esteve por 30 anos, e entrar no PV, a senhora trocou a religião católica pela evangélica. Como foi mudar duas coisas centrais na sua vida?

Tenho excelente relação com meus irmãos católicos, respeito muito. Continuo cristã. Um processo de conversão não é algo que se possa racionalizar. Você pode fazer a escolha... Como o próprio Jesus dizia, “não é pela força nem por violência, é pelo toque do espírito”.

Foram transformações importantes, em uma altura da vida em que a maioria das pessoas está mais rígida, menos aberta a mudanças.

Santo Agostinho se converteu aos 40 anos. Existem inúmeros exemplos de pessoas que fizeram algo parecido. Se você acha que as coisas estão cristalizadas, fica muito difícil mesmo. Mas se você entende que, em alguns momentos, tem que passar por um processo de desadaptação criativa daquilo que você sempre foi... Isso não tem nada a ver com uma posição frágil.

Como é a sua relação com o líder de seu novo partido na Câmara, Zequinha Sarney?

De respeito e amizade. Eu o conheci quando ele era ministro do Meio Ambiente. Foi uma pessoa que entrou para ser ministro, talvez até pelo viés tradicional, e realmente se converteu à causa.

Ele apareceu nos escândalos que o pai dele, o senador José Sarney, protagonizou, como no caso da empreiteira que teria facilitado a venda de um imóvel para ele.

Essa questão da casa não ficou comprovada. As dúvidas que apareceram estão todas sendo investigadas, e devem ser investigadas. Inclusive para que os inocentes sejam inocentados e os culpados sejam punidos. Mesmo que minha posição tenha sido pelo afastamento de Sarney [da presidência do Senado], o deputado José Sarney Filho foi um dos grandes entusiastas da minha entrada no PV.

Esta será a primeira eleição presidencial sem o Lula em 21 anos. Ele vai fazer falta?

Sem o Lula em termos, ele vai ter um papel muito forte... Não vou votar no Lula pela primeira vez. Ainda bem que ele não é candidato! [Risos.]

Como foi sua aproximação do empresário Guilherme Leal, cotado para ser seu vice?

Conheci o Guilherme quando já estava aqui no Senado, muito pelo trabalho que ele vinha fazendo no Instituto Ethos, um grupo de empresários que foram a vanguarda do socioambientalismo no Brasil. Ele não usa a questão ambiental como marketing. Tem mais gente assim, como o Oded Grajew, o Ricardo Young, o Roberto Klabin, o Israel Klabin, o Eduardo Capobianco...

Mas vice-presidente só pode ter um...

[Ri] Sim, mas até agora o Guilherme só se dispôs a se filiar ao PV. Já foi muito bom. Não assuste o Guilherme!

Um empresário como vice ajudaria a acalmar alguns setores da sociedade, como José Alencar fez em relação ao Lula?

Acho que o Guilherme vai se sentir muito honrado em ser comparado ao nosso querido José Alencar... Olha, a realidade responde na língua em que é perguntada. É pretensão achar que se pode falar todas as línguas e pertencer a todas as tribos. Então, se para os empresários é bom ter seus pares falando as mesmas coisas que falo, ótimo.

Como mudou sua relação com o tempo desde que se tornou candidata?

O tempo já era um recurso precioso e escasso...

E não renovável.

[Risos] Exato. Agora, está mais precioso e mais escasso. Com mais necessidade de ser bem manejado. Mas está no começo, ainda é uma pré-candidatura. Meu dia começa mais ou menos às 6h15. A agenda, por volta das 8h30, e acaba bem tarde. Ontem saí daqui do gabinete [no Senado] às 22h40.

O tempo da sua infância, no interior do Acre, devia ser muito diferente.

O tempo era longamente degustado. As coisas aconteciam lentamente. As distâncias eram muito grandes, também. A casa mais próxima da nossa ficava a 1h45 de caminhada. O comboio que trazia mercadorias e levava borrachas passava de 15 em 15 dias. Aprendi a viver com estes dois tempos: o tempo de acolhimento, em que você é capaz de processar as coisas e ter alguma intimidade, e o tempo da cidade, que expõe, exibe, busca a velocidade.

Qual foi a primeira cidade em que morou?

Manaus. Tinha 6 anos de idade quando meu pai vendeu nossas benfeitorias, porque o seringal era do patrão, e fomos para lá. Ficamos cinco meses em Manaus, num bairro de invasão chamado Morro da Liberdade. Não deu certo. Antes de o dinheiro acabar, meu pai resolveu ir para Belém. Ficamos um ano e oito meses. Depois, tivemos que voltar pro Acre, altamente endividados.

Como foi chegar a Manaus?

Me assustou muito aquilo tudo. Mas era uma criança curiosa, então comecei a prospectar a cidade, escondida da minha mãe.

Saía de casa escondida?

Saía com uma prima que é um ano mais velha, tinha uns 7 anos. Nós fomos a um colégio de freiras. Foi a primeira vez que vi um piano e um tapete. Tinha uma freira e uma moça estudando piano com ela. Ouvi aquela música e achei tão bonito... Nunca tinha ouvido uma música daquela, ainda mais saindo de uma caixa de madeira. Quis me aproximar, mas a gente tinha andado pelo igarapé, na lama, e estava com as sandalinhas sujas. Tirei a minha sandalinha, botei na mão e saí caminhando pelo tapete. Quando a freira viu, disse: “Não precisa tirar as sandálias”.

E esse cuidado de tirar as sandálias sujas?

Morei com a minha avó dos 5 anos pra frente, lá no seringal. Ela era velhinha, tinha uma mão dura, o que dificultava fazer algumas coisas. Aprendi que quanto menos sujasse a casa, melhor, pra minha avó não trabalhar. Então, nunca entrava com a sandália suja dentro de casa.

Por que você morava com ela, e não com seus pais?

Me apeguei muito à minha avó. Minhã mãe ia pro roçado com meu pai, e eu ficava com a minha avó. Aos 4 anos, comecei a insistir a morar com ela.

E a sua mãe?

No início, resistiu. Mas era uma casinha perto, uns 10 minutos andando dentro de uma capoeira. Persisti, até que ela deixou. Ia brincar com os meus irmãos na casa do meu pai e, como não gostava daquela barulhada, voltava pra minha avó... Era uma criança que vivia com pessoas idosas, também morava lá um tio que era xamã.

Xamã?

Gostava muito dele. Viveu com os índios dos 12 aos 37 anos, por aí. Depois, saiu da aldeia do Alto Madeira e foi morar com a gente. Ele me ensinava um pouco de pescaria, de cerâmica, os segredos da floresta. De sete em sete anos, ficava 40 dias e 40 noites na mata. Um retiro, um ritual, não sei explicar... Quando ele ia, eu ficava rezando à noite, com medo de a onça comer ele.

Já viu onça?

Cara a cara, não. Mas ouvi o esturro. Passei com minhas irmãs perto de onde ela guardou a carniça. Foi uma experiência forte. Nossos cachorros ficaram ganindo, uns se urinavam, outros se obravam. Nós ficamos desesperadas, subimos numa árvore. E os cachorros lá embaixo pedindo socorro [risos]. A sorte é que tinha uma espingarda. Como a gente não sabia atirar, minha irmã pegou o cano da espingarda e buzinou nele para pedir ajuda. Meu pai escutou e veio...

Vocês andavam com espingarda?

É, minha mãe achava que poderia dissuadir alguma abordagem.

De homem?

É, de homem. Era uma espingarda calibre 20. Minha irmã mais velha era quem tinha a autorização pra carregar. Graças a Deus, nunca aconteceu nada.

Como eram os rituais do seu tio xamã, fazia fumegações, conversava com espíritos?

Na linguagem espiritual dele, sim. Se alguém ficava com azar pra caçar, pra pescar, pra qualquer coisa, recorria às defumações dele.

Ele chegou a fazer alguma coisa quando a senhora ficou mais doente?

Não... O que ele fazia era me dar chás e me ensinava a fazer chás.

Conhece bem as plantas?

Uma boa parte, sim. Meu pai às vezes me testa. Se você tá com febre, parecendo malária, toma chá de quinaquina. Se tá com anemia, chá de casca de jatobá; diarreia, chá de olho de goiaba; verminose, come semente de jerimum com semente de mamão.

Já tomou o chá do Daime?

Não. Conheço algumas comunidades do Daime, tenho amigos lá do Santo Daime, mas nunca senti necessidade de tomar. Sempre tive a minha espiritualidade... Teve um momento de um certo distanciamento, mas depois retomei novamente.

Que momento foi esse?

Foi durante a militância estudantil.

Uma conversão marxista?

Quase. Você vai se envolvendo nos movimentos sociais, nas lutas... Tanto que meus amigos marxistas-leninistas me chamavam de “igrejeira”.

Chegou a considerar religião o ópio do povo?

Não, conhecia muitas pessoas como [o arcebispo de Porto Velho] dom Moacyr Grecchi para imaginar que o que faziam era o ópio do povo.

Alguma experiência com drogas?

Nunca. Bebida alcoólica, só Biotônico Fontoura [risos]. Com tantas malárias e hepatites, tenho um fígado muito delicado, não dá para chegar perto de bebida alcoólica.

Como reage a uma certa unanimidade que se forma em torno da sua figura?

Com a clareza de que ninguém está acima do bem e do mal, de que somos todos seres humanos, pessoas falhas... Não se pode alimentar esse processo de mitificação.

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