domingo, 15 de setembro de 2013

A MÁQUINA DE CONTAR DINHEIRO

Por Hudson Corrêa, da revista Época
Em 2005, o empresário carioca Murillo de Almeida Rego foi acusado pela CPI dos Correios de montar operações para lesar fundos de pensão de empresas estatais. Depois do episódio, abandonou a carreira no mercado financeiro. Como suvenir daquele tempo, conservou em casa uma máquina de contar dinheiro. O aparelho voltou a ser útil na manhã chuvosa de 22 de fevereiro de 2008, quando Jayme Orlando Ferreira bateu à porta de seu apartamento, no Rio de Janeiro. Jayme era assessor de Lindbergh Farias. Naquela época, o hoje senador do PT do Rio era prefeito da cidade fluminense de Nova Iguaçu. Jayme trazia uma mochila cheia de dinheiro. A maquininha contou R$ 150 mil. Murillo tinha uma câmera escondida na sala de visitas. O equipamento registrou a maquininha em ação e gravou 40 minutos de uma conversa nada republicana.
A primeira menção ao vídeo foi feita em maio de 2008, numa reportagem publicada pelo jornalista Mino Pedrosa. No texto, ele acusou o procurador-geral de Justiça do Rio, Marfan Martins Vieira, de ser o destinatário de propina do grupo ligado a Lindbergh. Incitado por Marfan, o Ministério Público do Estado moveu uma ação por calúnia contra Pedrosa e, em 2009, solicitou uma perícia da gravação. A Justiça constatou que Pedrosa deturpou os diálogos do vídeo e, por isso, ele foi condenado. Procurado por ÉPOCA, Pedrosa não se manifestou até o fechamento desta edição.
Agora, ÉPOCA obteve com exclusividade a degravação do vídeo, feita por uma perícia do Ministério Público Estadual do Rio. No diálogo, duas coisas intrigaram especialmente os procuradores. A primeira é a pergunta óbvia: quem mandou e a quem se destinava o dinheiro da mochila? A segunda é um trecho do vídeo em que o assessor Jayme Ferreira menciona um acordo para derrubar uma decisão judicial que prejudicaria o então prefeito Lind­bergh, candidato à reeleição em 2008. Jayme fala num dinheiro destinado ao desembargador José Carlos Paes, do Tribunal de Justiça do Rio.
O vídeo caiu nas mãos do Ministério Público do Rio de Janeiro em 2009. Foi encaminhado no ano seguinte ao Ministério Público Federal, por envolver um desembargador. Depois de analisar as transcrições, os procuradores enxergaram indícios de pagamento de propina ao magistrado. Por isso, o caso foi remetido, em junho de 2012, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), a quem compete julgar desembargadores. Ao constatar o envolvimento de Lindbergh, o ministro do STJ Humberto Martins despachou: “Se um dos supostos envolvidos na prática do crime de corrupção ocupa hoje o cargo de senador da República, compete ao Supremo Tribunal Federal conduzir a presente sindicância”. O STF entendeu que havia elementos suficientes para autorizar a abertura do inquérito investigando Lindbergh e José Carlos Paes. Isso foi feito em 13 de fevereiro deste ano. Uma das primeiras providências autorizadas pelo ministro Gilmar Mendes, relator do caso, foi mandar a Polícia Federal ouvir Murillo e levantar processos no Tribunal de Justiça que, entre 2004 e 2008, tivessem Lindbergh e Jayme como réus ou condenados. Lindbergh também será ouvido no Supremo. A investigação sobre o conteúdo do vídeo se dará em duas frentes: origem e destino do dinheiro e suspeita de compra de decisões judiciais.
Há pistas sobre a questão da mala de dinheiro. Em depoimento prestado à Justiça Estadual em julho de 2010, Murillo afirmou que emprestara a quantia a Lind­bergh – e que Jayme, o assessor da mochila, trouxe o dinheiro para quitar a dívida. Murillo disse que não sabia que destino Lindbergh daria ao dinheiro. Afirmou que “tinha o hábito de emprestar” recursos a Lindbergh (leia ao lado). A relação entre Murillo e Lindbergh é antiga. Murillo foi assessor parlamentar de Lindbergh quando ele era deputado federal na década de 1990. Nos anos seguintes, Murillo se tornou operador do mercado financeiro, até ser flagrado pela CPI dos Correios. Graças a informações privilegiadas obtidas por meio de influência política, um grupo de corretores ganhava dinheiro, enquanto fundos de pensão, incluindo os de empresas estatais, tomavam prejuízo. A CPI concluiu que a artimanha provocou um rombo de R$ 780 milhões a 14 fundos. Por causa das transações, Murillo e sua mulher, Rogéria Beber, receberam uma multa de R$ 3 milhões da Comissão de Valores Mobiliários em 2012.
No tocante à outra investigação – sobre o desembargador José Carlos Paes –, é útil assistir ao vídeo. Naquela manhã de 2008, quem abre a porta do apartamento é Rogéria, mulher de Murillo. Ela diz a Jayme que o marido ainda dorme. “Se ele está dormindo, estou deixando aqui para ele ver. Aqui tem dinheiro coletado. Eu me dei ao trabalho de contar justamente por causa disso”, diz Jayme. Os dois colocam o dinheiro na máquina. “Certinho”, diz Jayme. “Posso dar uma palavrinha com você? Quer uma água, alguma coisa?”, pergunta Rogéria. “Não, quero só lavar a mão”, responde Jayme.
Jayme fala rispidamente. Tinha seus motivos. No começo da administração de Lindbergh, ele era presidente da Comissão de Licitações da prefeitura de Nova Iguaçu. As principais contratações do município passavam por suas mãos. A vida de Jayme mudou quando ele avalizou a contratação de uma empresa de publicidade que trabalhara na campanha de Lindbergh em 2004 – ocasião em que Lindbergh conseguiu seu primeiro mandato em Nova Iguaçu. Depois da campanha, a empresa levara um calote. O Ministério Público Estadual entendeu que a contratação visava pagar, com dinheiro público, a dívida de campanha. Jayme foi afastado do cargo e seus bens foram bloqueados pela Justiça Estadual.
Rogéria quer arrancar novidades do assessor de Lindbergh. No meio da conversa, vem à tona o nome do desembargador José Carlos Paes. “O Zé Carlos assumiu um compromisso comigo. Ele... Ele... Foi uma forma de pressionar o Lindbergh, mas é uma coisa para mim. O que foi combinado comigo foi honrado. Então, ele tem que honrar a parte dele”, diz Jayme, segundo a degravação. “O Murillo não quer nem papo mais com o Zé Carlos”, afirma Rogéria. Jayme diz que Lindbergh, candidato à reeleição, tem muito a perder com a demora do desembargador em cumprir o combinado. “Já estou com bem indisponível. O maior interessado nisso é o Lindbergh, que não pode entrar na campanha com essa situação. Foi o que ficou combinado, que o Zé Carlos ia tirar isso no Tribunal, para que tirasse depois na Justiça; que também derrubada essa liminar, acabou essa história” (sic). Não se sabe a que processo Jayme se referia. Uma das linhas da apuração do inquérito no STF é justamente identificar sobre que ação o assessor falava.
No vídeo, Jayme ainda cita o nome de um assessor informal de Lindbergh, Renato Coloci Figueiras. Ele não tinha vínculo empregatício com a prefeitura de Nova Iguaçu, mas, segundo Jayme, chegava a despachar na sala ao lado do gabinete de Lindbergh. Renato tinha prestígio por ter sido um importante operador político da aliança do PT com o DEM, que garantiu a eleição de Lindbergh em 2004. “O Renato é um cara que me surpreendeu absurdamente de forma negativa. Até hoje, eu não engulo a história do dinheiro aqui, que ele falou que era para o Zé Carlos”, afirma Jayme, dando a entender que Renato embolsou a quantia. “E aí eu falo isso para o Lindbergh e aí ele não entende, não sabe? Então, tem mais é que se f... mesmo”, afirma Jayme. Renato também é investigado no inquérito em tramitação no STF. Ele nega ter recebido dinheiro.
Em sua defesa no processo, o desembargador José Carlos Paes disse que nunca julgara nenhum processo sobre Lind­bergh ou o assessor Jayme e apresentou certidões do Tribunal de Justiça. Segundo ele, não fazia sentido que lhe oferecessem propina. Depoimentos tomados ainda na fase da Justiça Estadual e anexados ao inquérito mostram, porém, que José Carlos Paes se aproximou de Murillo e de Renato, o assessor informal de Lindbergh, em 2007. Naquele ano, José Carlos Paes almejava apoio político para conquistar uma vaga de ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele queria se aproximar de deputados e senadores em Brasília. Murillo contou em depoimento que encampou essas pretensões. Ele diz que apresentou José Carlos Paes a Marcelo Sereno, ex-assessor do ex-mi­nistro José Dirceu, ao senador José Sarney (PMDB-AP) e ao advogado Roberto Teixeira, amigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Outra providência de Murillo foi recrutar Renato, o assessor informal citado por Jayme no vídeo. Renato topou a missão rapidamente, pois achava que poderia ocupar um cargo no STF, se José Carlos Paes fosse escolhido ministro. Murillo afirma que pagava passagens aéreas para Renato viajar para Brasília e atuar na campanha dele. Os esforços foram inúteis, pois a vaga no Supremo, em 2007, ficou com o ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que morreu dois anos depois, dando lugar a José Antonio Dias Toffoli. Procurado por ÉPOCA, José Carlos Paes disse que conhece Renato e Murillo, mas nega ter sido apresentado a políticos pelos dois. Também afirma que Lindbergh não o apoiou.
Procurado por ÉPOCA, Lindbergh Farias afirmou, por meio de sua assessoria, que nunca pediu dinheiro emprestado a Murillo. Lindbergh diz que Murillo foi seu assessor por poucos meses em 1994, quando exercia mandato de deputado. Ainda conforme a assessoria, o vídeo gravado teve o “estigma de armação” para prejudicá-lo na reeleição a prefeito em 2008. “Todos os personagens envolvidos no vídeo incorporado ao inquérito, ao ser ouvidos em juízo, afirmaram que as menções feitas a autoridades, entre elas o senador, eram baseadas em meros boatos”, diz a assessoria de Lindbergh. A investigação ordenada pelo STF agora apura os fatos.
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