Artigo de Fernando Gabeira
O atentado ao “Charlie Hebdo” me colheu num trabalho no
Maranhão. Tive tempo ainda de escrever um artigo geral sobre o tema. Deixei
para domingo, dia mais ameno, algumas reflexões pessoais. Bruscas mudanças no
mundo, às vezes, nos levam a examinar nosso lugar nele. Minha família veio do
Líbano, um país com histórico de conflitos religiosos. Eram cristãos, minha avó
tinha cruzes tatuadas na testa e no braço. Isso sempre me impressionou e, ao
longo dos anos, novos conflitos religiosos me parecem uma tristeza que não tem
fim.
Por várias razões criei uma certa resistência em estudar o
Islã. Cheguei a discursar sobre o perigo do Islã político, porque, mesmo sem
estudá-lo a fundo, sinto que a fusão do estado com a religião sempre termina em
prisão, tortura e morte. Ainda mais com visão tão estreita sobre mulher e
sexualidade. Agora vejo, de todos os lados, uma advertência para dissociar o
Islã da violência, sob o perigo de parecer racista e islamofóbico.
Essa advertência se articula com outra, sutil: a de que as
religiões não devem ser criticadas, que elas devem ficar fora do raio de alcance
da liberdade de expressão. Esse é o problema. Vivemos num mundo democrático em
que a blasfêmia não é um crime. O “Charlie Hebdo”, de uma certa forma, mostrava
onde o terrorismo se nutria no Islã. Num dos desenhos na porta do paraíso,
Maomé advertia: parem com as bombas, estamos em falta de virgens.
É uma maneira de enfatizar como a visão do martírio e suas
recompensas inspiram homens-bomba. De todos os discursos, o que mais mexeu com
minha intuição foi o do presidente do Egito, que não só denunciou as
interpretações do Islã, mas afirmou que era necessária uma revolução religiosa
para integrá-lo na pluralidade do mundo moderno. A capacidade do Islã de se
rever no mundo, algo que os católicos fazem, sem traumas, com o Papa Francisco,
pode ser uma luz no fim desse longo túnel.
Alguns sinais animadores existem tanto na Europa como nos
Estados Unidos, onde parte da comunidade islâmica define o terrorismo como
inimigo comum. O combate direto ao Estado Islâmico é dado por muçulmanos que
arriscam suas vidas. O número de mortos em atentados é muito maior na região do
que no Ocidente. Mesmo com a derrota do terrorismo ainda ficaria no ar um ponto
em que é difícil separar o islamismo da violência. O total enlace do estado com
a religião tende a transformar os infiéis em criminosos.
A fatwa, pena de morte para o escritor Salman Rushdie, foi
decretada por autoridades religiosas. Na Arábia Saudita, o blogueiro Ralf
Badawi foi condenado a mil chibatadas. Minha hipótese sobre o Islã é a mesma
que tenho sobre o marxismo. Muita gente diz que o marxismo é perfeito, mas os
equívocos foram obra do socialismo realmente existente. Não havia nada errado
com o texto, mas sim com os intérpretes. Como textos corretos podem levar a
interpretações tão violentas e autoritárias? Não haverá alguma coisa neles que,
de certa forma, estimula massacres?
No passado, concordava com Sartre na sua benevolência com as
ações terroristas na Argélia. E rejeitava a posição de Camus. Hoje, compreendo
que errei. O próprio Camus, em “Os justos”, mostra que os terroristas que iam
matar o arquiduque Francisco Ferdinando, há um século, adiaram o ataque porque
havia crianças na carruagem. Agora, estamos diante de terroristas que não se
importam com a presença de crianças, sob o argumento de que crianças são mortas
no Oriente Médio.
Jornais americanos não publicaram os desenhos do “Charlie
Hebdo”. Dizem que seu estilo é outro, não publicam material contra religião.
Mas, depois do atentado, é um erro jornalístico. Aqui no Brasil, mesmo com a
clavícula quebrada, saí exibindo o filme “Je vous salue, Marie”. Não gostava
tanto do filme, no final estava até meio cansado dele. O que estava em jogo não
era minha afinidade com o filme de Godard. Claro que uma coisa é o contexto de
“Je vous salue, Marie”, Sarney e Igreja Católica. Outra, Maomé e os radicais
islâmicos. Nesse sentido, tive sorte quando minha avó com a cruz na testa fez a
mala e veio para o Brasil. Mas o Brasil, através do seu governo, me desaponta
nesse drama de alcance mundial. Quando Dilma propôs um dialogo com o Estado
Islâmico, na ONU, percebi que o governo vive numa outra época. A nota formal de
condenação do atentado parece o exercício de um dever burocrático.
A família veio para o país certo, apesar do governo. Quantas
vezes com o Minc e Sirkis fizemos manifestações pela paz com judeus e árabes
juntos no Saara? Isso não quer dizer que não exista intolerância religiosa no
âmbito nacional. Nem tentativas de associar o Estado à religião, o que
enfatizei em artigo sobre as eleições no Rio. Olhando para trás, no momento de
barbárie, vejo como a ideia da liberdade individual, livre de doutrinas
políticas ou religiosas, é uma trincheira a se defender com todos os riscos.
Embora os riscos não sejam tão altos aqui nos trópicos.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 18/01/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário