Artigo de Fernando Gabeira
Nos últimos dias, Deus entrou na minha vida algumas vezes. A
primeira foi quando o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, disse que
nossa situação hídrica dependia de Deus. E Deus é brasileiro. Na segunda foi
ouvindo uma conferência do psicanalista Joel Birman. Ele falava precisamente do
eclipse de Deus no mundo moderno: fomos lançados à nossa própria sorte, tendo
que definir os caminhos sem lei divina que nos oriente. Citou até Dostoievski:
se Deus não existe, tudo é permitido.
Birman nos conta que vivemos uma angústia básica uma vez que
nosso sistema defensivo é incapaz de prever todas as variáveis que nos ameaçam.
Logo, um certo nível de paranoia é normal e comum a todos os habitantes do
mundo moderno.
Para quem vive no Rio, como eu, bota paranoia nisso. Quer
dizer, o nível normal de paranoia é, naturalmente, um pouco acima da média.
Doze pessoas foram atingidas por balas perdidas em dez dias. Duas crianças
morreram. A bala perdida é indefensável. Aliás, não gosto do adjetivo perdida.
É uma bala que encontrou um alvo errado. É uma vida perdida, e quando ouço em
casa os tiroteios no morro, não penso nelas, nas balas perdidas, mas nas vidas
que podem encontrar pelo trágico caminho que suas trajetórias descrevem.
No caso da água e energia, vivemos também na incerteza: elas
vão acabar, teremos racionamento, apagão? No momento em que escrevo quem apagou
para nós foi Dilma. Ainda não deu as caras para dizer qual o estado de nossos
reservatórios e usinas, que projeto tem para o duro período que se abre.
Uma terceira dose de paranoia vem da crise econômica. Há uma
revoada de passaralhos, chegando como aves de arribação. Vejo empregos se
derretendo aqui e ali e uma crescente preocupação com a perda do trabalho. É
necessário colocar Deus entre parênteses para enfrentar o imenso desafio que
temos pela frente, com nossa capacidade de avaliar e escolher.
Às vezes olho a crise de água que se abate sobre 45 milhões
de brasileiros como um pesadelo. Sentia-me assim lendo sobre a Guerra das
Malvinas, aquela gente fazendo guerra num mar escuro e revolto. Gostaria de
acordar e constatar que aquilo só existe na minha imaginação. Muita gente na
rua pensa que o governo não tem culpa nesse processo. Que era impossível fazer
novos reservatórios; como realizar isso num período de chuvas?
Os rios brasileiros e o próprio mar são um saco de pancadas.
Muitos estão em decadência, alguns agonizam. Chegamos a construir instrumentos
para atenuar a devastação: comitês de bacia e cobrança pelo uso da água,
reinvestindo quase 100% dos recursos na própria conservação do rio.
Existe um edifício legal, mas quase desabitado. Perdemos
muita água no processo de distribuição. Jamais nos aventuramos, talvez por
questões culturais, a reaproveitar o esgoto, transformá-lo em água pura.
Fizemos uma série de audiências sobre a dessalinização, mostrando as diversas
técnicas que existem e poderiam ser disseminadas pelo litoral brasileiro.
Nada disso foi usado adequadamente para conter a crise. Além
do mais, ela chegou mais cedo do que minhas previsões pessimistas. Ao percorrer
o rio Piracicaba, disse num documentário que grande parte dos especialistas
considerava que a água teria no século XXI todo o potencial de conflitos que o
petróleo trouxe ao século passado. Ironicamente, parto agora para Apodi, onde
andei trabalhando sobre a morte dos jumentos no Nordeste. A pequena cidade do
Rio Grande do Norte é rica em água, encontrada facilmente no subsolo. Depois de
quatro anos de seca, nunca faltou água na cidade que exporta, para dez outras,
em carros-pipas, e como água mineral vende para outros estados do Nordeste.
Num momento como este, Apodi não sonha com petrodólares, mas
aquadólares. No meio do caminho, faço minhas contas. Uma simples garrafa de
água mineral custa R$ 4 reais no aeroporto. Em alguns lugares do interior ainda
a compro por R$ 2. Pelos meus cálculos, portanto, mesmo o mais barato litro de
água mineral custa mais caro que o de petróleo.
É inevitável que a economia se ocupe da água como recurso
decisivo. Na Califórnia, inúmeros mecanismos financeiros cuidam de lembrar ao
consumidor de como se comportar num universo de escassez de água. Israel não só
conseguiu sobreviver na escassez como fez dela uma riqueza, através da
exportação de tecnologia.
No romance de Amós Oz “Judas”, o personagem principal é um
jovem marxista romântico que usa aqueles casacos de inverno com uma cordinha e
botões de madeira. A namorada o deixou por um engenheiro hídrico. O livro se
limita a registrar apenas que a mulher trocou o herói por um engenheiro
hídrico. Mas deve ser uma profissão de prestígio no país.
Até o momento, no Brasil, contamos apenas com Deus, que
ainda pode terceirizar a responsabilidade para São Pedro. No sertão bravo, um
personagem de Guimarães Rosa diz: “Deus, mesmo, se vier, que venha armado”. No
Sudeste brasileiro, Deus, mesmo, se vier, que venha com uma garrafinha de água
mineral.
Fernando Gabeira, jornalista, escritor e ex-deputado
federal.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 01/02/2015


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