Artigo de Fernando Gabeira
Aceitei o convite de um debate sobre exílio. Não devia. O
corre-corre não me permite preparar minhas lembranças. Não posso recorrer,
longamente, ao belo livro de Maria José de Queiroz “Os males da ausência”,
sobre literatura de exílio. O livro tem 700 páginas e o li há bastante tempo.
No convite, havia uma pergunta que me seduziu: existe exílio no próprio país?
Em princípio, a resposta deveria ser não. Exílio é desterro. As expressões
homesickness e mal du pays são específicas para esse tipo de saudade do país de
origem.
De um ponto de vista espiritual, é sempre possível se exilar
do mundo. Várias religiões preveem essa escolha, que deixa para trás as
preocupações mundanas com a matéria e opta por uma trajetória santificada.
Minorias podem se sentir isoladas em certos países em que são desprovidas de
direitos e podem viver uma sensação de exílio.
Mas não é isso que persigo, e sim um sentimento de
inquietação e estranheza levemente parecido com o que Freud descreve em seu
ensaio sobre uma visão do familiar que se torna misteriosa e perturbadora.
Algumas pessoas, em relação ao Brasil, sentem-se fora de casa dentro da própria
casa. É como se o país fosse um imenso boneco que parece ter vida, ou um
defunto que começa a piscar os olhos, na hora do enterro. Arrisco-me a apontar
uma das causas: o colapso dos valores na esfera pública.
Bem ou mal, as décadas de redemocratização foram povoadas de
valores que convergiram para a vitória do PT em 2002. De uma certa forma,
estávamos sob o impacto de valores destinados a se instalar, como em outros
países, no universo político. Não sou ingênuo a ponto de imaginar que sempre
existiram no universo público. A sensação de familiaridade, de estar em casa,
nascia da esperança de transformação. A esperança foi traída. Os agentes da
mudança passaram a fazer e a falar as mesmas coisas que pareciam combater. O
que era apenas uma promessa se tornou uma decepção.
Num exílio de fato não é apenas um lugar que se perde no
caminho, mas também a própria expressão. Alguns escritores desterrados chegam a
produzir em outro idioma para superar a nostalgia da palavra nativa. Não
perdemos o lugar nem a língua. Mas ambos se tornaram estranhos. Surgiu uma nova
língua, na verdade um verdadeiro paredão de eufemismos para esconder o cinismo
e a roubalheira.
Desconfortáveis com o lugar e a palavra, podemos sentir o
medo do garoto de Hoffmann, dissecado pela análise de Freud. O vilão do conto é
o Homem de Areia, que lança tanta areia nos olhos das crianças que chega a
arrancá-los e levá-los consigo para o seu distante ninho. Na análise de Freud,
o medo do Homem de Areia mascara o pavor da castração. Mas, se deixamos a
esfera da psicanálise, podemos ver nesses jatos de areia a perda da cidadania.
Marqueteiros jogam areia nos nossos olhos. Decidem eleições. De nada adianta
denunciar o poder nem restabelecer a adequação das palavras. De tempos em
tempos, nas eleições, quando se espera um debate racional sobre o futuro, jatos
de areia cruzam o país de norte a sul.
A estranheza cotidiana ao perceber que nem sempre polícia e
bandido são diferenciados estende-se também às altas esferas. Acossado pelo
escândalo, o governo, por meio do Ministro da Justiça, negocia, sigilosamente,
com advogados para acalmar prisioneiros da Operação Lava-Jato.
O Brasil sempre esteve no Ocidente, e, a partir dos últimos
anos, tornou-se uma democracia ocidental. Mas se move na política externa de
uma forma distante desse paradigma. Entramos num universo bolivariano repleto
de loucuras. Nicolás Maduro conversa com Chávez, transfigura em pássaro.
Cristina Kirchner zomba dos chineses no Twitter, suicida o promotor Alberto
Nisman num dia e, num outro dia, acha que foi assassinado. Dilma Rousseff
propõe na ONU um diálogo com os cortadores de cabeça do Estado Islâmico.
O exílio me ensinou que nunca se volta para o país dos
sonhos. O país muda, e você também. Não se trata de um reencontro com um país
ideal, mas alguma coisa mais familiar, menos inquietante. Ao contrário dos
processos mentais que às vezes se repetem de forma mórbida, uma das estranhezas
no texto de Freud, o curso da História tende a se renovar. Há um caminho de
volta. Não me atrevo a descrevê-lo em suas linhas gerais. Suponho apenas que
seja pavimentado por alguns valores. Um deles é encarar as evidências,
respeitar os interlocutores, não se socorrer dos homens de areia para nos
arrancar os olhos.
Parem de produzir estranhezas históricas, deixem-nos em paz
com as estranhezas que o subconsciente produz. Elas bastam. A tarefa de enganar
um país inteiro é muita areia para o caminhão deles. Felizmente. Mas, por
enquanto, e durante todo o desenrolar do terceiro ato, ainda está tudo um pouco
estranho no país.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 22/02/2015
Nenhum comentário:
Postar um comentário