Todos lançam olhares inquisidores sobre o carro. As cabeças
descrevem o movimento exato do automóvel ao passar pelas ruas, ansiosas por
saber quem são os forasteiros. Um repórter barbudo, um fotógrafo argentino, um
padre irlandês de rosto vermelho e um missionário inglês enorme formariam um
grupo exótico em quase todos os lugares do mundo. Em Vista Alegre do Abunã, um
distrito minúsculo de Porto Velho, em Rondônia, são uma aberração.
A tensão que acompanha jornalistas em apurações sobre
questões agrárias na Amazônia é grande. No geral, vai-se a locais com baixa
presença institucional do Estado e com uma cultura de violência e
ajustiçamento. O Brasil é um dos países com piores índices de assassinato de
profissionais de imprensa, segundo ranking elaborado anualmente pela
organização Repórteres Sem Fronteiras. Ter escolhido um caso ocorrido numa frente
nova de desmatamento para começar a apuração que resultaria no livro
Corumbiara, caso enterrado (Editora Elefante, 2015) não foi uma decisão
prudente.
Na realidade, qualquer um que chegasse de fora chamaria
atenção. Qualquer um que viesse querendo saber desse assunto. Faz quase dois
anos que tudo ocorreu. A cerca por onde escorreu o sangue de Adelino Ramos é a
única testemunha dos fatos. Ninguém quer abrir a boca. Ao longo do dia,
jogam-nos de um lado para o outro, sem fornecer informações sobre quem pode ter
encomendado a morte de Dinho. Líder do Projeto de Assentamento Florestal (PAF)
Curuquetê, a poucos e pedregosos quilômetros daqui, no sul do Amazonas, ele foi
assassinado num domingo do final de maio de 2011.
Cerca de um mês antes, havíamos conversado por telefone, num
intervalo de poucos minutos em que havia sinal de celular. “A gente defendeu um
projeto inovador no país, que é o assentamento florestal comunitário, e é esse
em que a gente está. Então, onde há matança de gente, onde há roubo de barreiras,
no estado do Amazonas… tudo que sai do Amazonas sai para Rondônia”, contou.
Adelino já estava encrencado.
Agora, em fevereiro de 2013, sob o calor abrasador do
noroeste rondoniense, espreitávamos sabendo que éramos espreitados. Vista
Alegre é um dos muitos distritos de Porto Velho, uma das maiores capitais do
país. Como vários dos povoados de Rondônia, tem um só caminho para entrar, sair
ou fugir, especialmente se não se está a bordo de uma picape. Dali a dez
quilômetros, em linha reta para o Norte, está o Amazonas, e dali a quinze, para
o Sul, fica a divisa com a Bolívia. Entre um lado e outro, madeira nobre sendo
transportada à luz do dia, em cinco mil viagens de enormes caminhões em direção
ao Sudeste, segundo contabilidade apreendida em poder dos “donos” da área.
A Polícia Federal e o Ministério Público Federal
investigavam havia quase três anos um esquema de loteamento ilegal de terras da
União convertidas em área de desmatamento. “É terra sobre terra. Ninguém é
dono. Com a instalação do assentamento Curuquetê, isso começou a criar um
impasse entre o pessoal que já estava lá. Como ninguém tem título, o
assentamento era um risco para eles”, contou um agente federal envolvido na
investigação. “A gente percebia que aquela situação estava insustentável e
poderia desaguar em alguma outra coisa. Não achava que podia desaguar em crimes
contra a vida.” Só depois da morte de Adelino a Justiça Federal autorizou que
se realizasse uma operação contra o corte ilegal da floresta.
Logo após o crime, a Polícia Civil anunciou a prisão de
Osias Vicente, envolvido com madeireiros locais, acusado de matar Adelino. Mas,
até o fim do ano, o Ministério Público Estadual não havia oferecido denúncia.
Uma história sem um pingo de originalidade: o Judiciário libertou o suposto
matador, que um mês depois acabou assassinado, o que levou ao arquivamento do
caso sem que se chegasse aos mandantes do crime contra o líder sem-terra.
Sem colher bons resultados em Vista Alegre, fomos até
Extrema, outro distrito de Porto Velho, onde Adelino foi atendido após os
disparos. “No caminho para Extrema, um carro ficou fechando eles, não deixou
correr. Até hoje ninguém soube me dizer que carro que era. Nem a placa”, contou
mais tarde um amigo da família que também não conseguiu arrancar informação
alguma sobre a morte. A ficha de atendimento é lacônica: óbito provocado por
perda de sangue. No posto policial, o boletim de ocorrência sobre Adelino é o
maior da unidade: uma pilha de meio metro de papel depositada entre duas
cadeiras. Um dos escrivães – são dois no total, respondendo por quatro
distritos – não dá esperança de que a investigação avance. São muitos casos
para cuidar e a estrutura é extremamente precária.
No começo, não sabíamos se dormiríamos em Vista Alegre.
Depois do clima tenso com que nos deparamos, não resta dúvida de que o mais
seguro é retornar ao centro de Porto Velho, para decepção do padre irlandês
Bernard Leo Dolan, amigo da família de Adelino que esperava retornar com algo
mais. É, de fato, um começo de viagem ruim.
Entre 2013 e 2014, quase sempre na companhia do fotógrafo
Gerardo Lazzari, percorro Rondônia para tentar entender as histórias que
envolvem o chamado “massacre de Corumbiara”, ocorrido em 9 de agosto de 1995
durante uma operação de reintegração de posse na fazenda Santa Elina, no sul do
estado. Segundo os números oficiais, 12 pessoas morreram – nove sem-terra, dois
policiais e um rapaz não identificado, possivelmente um pistoleiro. Resumindo
de maneira simplória, a acusação levou ao julgamento de dois posseiros e de 12
agentes de segurança. Do lado dos ocupantes, saíram condenados Cícero Pereira
Leite Neto, seis anos e dois meses de reclusão, e Claudemir Gilberto Ramos,
oito anos e meio. Entre os PMs, foram sentenciados os soldados Airton Ramos de
Morais, a 18 anos, e Daniel da Silva Furtado, a 16 anos, e o então capitão
Vitório Régis Mena Mendes, a 19 anos e meio.
A história de Adelino, presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Corumbiara na época, é uma entre várias relacionadas ao
caso. Fundador do Movimento Camponês Corumbiara (MCC), de 1995 a 2011 conseguiu
assentar muitas famílias, brigou com amigos e inimigos, zanzou Rondônia de sul
a norte, escapou da acusação pelas mortes ocorridas na Santa Elina. Em Lábrea,
no Amazonas, esperava tocar mais um assentamento. Num lugar improvável. “Não
tem condição nenhuma de manter qualquer atividade produtiva. Não tem terra, não
tem água, não tem luz. Tem todo tipo de problema de malária, febre amarela,
bicho peçonhento”, contou um agente federal.
Nos dias seguintes àquela busca pouco frutífera por
informações em Vista Alegre, os gringos ficaram em Porto Velho, enquanto
Gerardo e eu fomos a Theobroma, no centro do estado, onde acabaram assentadas
entre 1995 e 1996 algumas das famílias do episódio da Santa Elina. O começo da
conversa era quase sempre igual: recebiam-nos com desconfiança, cara amarrada,
incomodados com o assunto. Parecia que daquele mato não sairia coelho. Até que
a pessoa, geralmente homem, começava a se soltar – e a soltar informações.
Nossa cabeça de paulista planejava fazer várias entrevistas ao dia, ignorando
que na roça o tempo é outro, que é preciso esperar o caboclo escolher o momento
certo de falar, criar laços de confiança.
A última parada prometia ser a mais tensa. Havia um misto de
curiosidade e receio por chegar ao palco dos acontecimentos. Depois de conhecer
Vista Alegre, vislumbrávamos algo parecido em Corumbiara. Não foi o que
ocorreu. Ainda que muitos tenham se dado conta de nossa presença, e até mesmo
dos motivos dela, os fatos de 1995 eram passado para a maior parte das pessoas.
Nas outras vezes, já sabendo andar sozinhos pela região,
vimos situações mais perigosas, mas não para nós. Na época do conflito, o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não chegou a desapropriar
a Santa Elina, operação que retomou 12 anos mais tarde, abrindo uma disputa
pelas terras férteis e simbólicas. A Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia,
ex-aliada de Adelino, e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Corumbiara
acabaram obrigados a dividir o assentamento. Basicamente, adversários
revolucionários e reformistas foram colocados dentro de um mesmo espaço. “O
povo que não sofreu o massacre com a gente fica implicando. Tem hora que eu
fico revoltado. Ficam pisando na gente. Eu pensava que a gente era tudo amigo”,
contou um homem, sob ameaças de morte por desentendimentos mesquinhos.
Sempre deixávamos Rondônia com a sensação de que seria
importante voltar. Os relatos dos sem-terra eram interessantes, mas repetitivos
e insuficientes. Era necessário entrevistar advogados, promotores, juiz,
políticos, integrantes de movimentos sociais.
Poucas passagens foram tão desgastantes quanto a conversa
com o ex-secretário-executivo de Valdir Raupp, governador na época do episódio
da Santa Elina. Telefonei para Édio Antônio de Carvalho no começo de 2014. Ele
avisou que só conversaria pessoalmente. Liguei de novo avisando que embarcaria
nos próximos dias para Porto Velho. “O Édio que você está procurando é outro”,
respondeu.
Era um sábado de manhã quando peguei o carro e fui ao
condomínio onde morava, nas imediações do centro de Porto Velho. Por sorte, o
esquema de segurança era frouxo e o rapaz da portaria não anunciou minha
chegada. Quando entrei em sua casa, fez uma cara de surpresa indescritível.
“Cansou de tomar ‘não’ pelo telefone? Veio tomar ‘não’ pessoalmente?”,
perguntou, muito irritado.
Com o passar dos minutos, acalmou-se e começou a narrar sua
versão. Uma versão diferente da que está registrada em relatório da Comissão de
Direitos Humanos da Câmara. Em 1995, Édio contou a deputados que não se chegou
a um desfecho pacífico porque o fazendeiro Antenor Duarte do Valle, vizinho da
área ocupada, rejeitou acordo para assentar as famílias. Agora, ele culpava os
sem-terra, a quem acusou de intransigência no diálogo, e dizia sofrer de
amnésia em relação a pontos incômodos. O ex-secretário-executivo disse ter
recebido ordem para prestar todo apoio às famílias, desde que aceitassem deixar
a fazenda.
No meio da prosa, criticou o governo do PT, tido como
comunista, e afirmou que, no que dependesse de Lula, Evo Morales teria invadido
o Brasil. Queixou-se de não conseguir mais contratar empregada devido ao Bolsa
Família. Enquanto conversávamos, sua mulher perguntou em que veículo
jornalístico eu trabalhava porque queria ler minhas reportagens para saber se
eu era de esquerda. Deixou ameaças no ar. Decidi sair dali o quanto antes.
Meti-me no centro de Porto Velho e fiquei rodando um tempo, até ter certeza de
que não haveria problema.
Em outras oportunidades, momentos de alta tensão se
revelaram calmos. Ou viraram frustração. Por duas vezes, tentei conversar com
os policiais militares de Vilhena, divisa com o Mato Grosso, sede do batalhão
em que atuava a maior parte dos envolvidos no caso da Santa Elina. Na primeira,
um PM esperou que eu chegasse à cidade para dizer que havia se arrependido e
não queria mais conversar. Outro viajou sem avisar e pediu que aguardasse por
uma semana ou dez dias, até a volta.
Na segunda vez, depois de uma entrevista animadora, parecia
que andava por bom caminho. A promessa era de que três policiais dariam uma
entrevista às 7 horas.
– Oi. O pessoal não apareceu ainda?, perguntou o PM que
havia garantido a conversa.
Passei o dia inteiro sentado, à espera de que viessem,
sempre com promessas renovadas de que estavam a caminho. Na manhã seguinte, fui
ao batalhão. Receberam-me com conversas sobre amenidades, contaram sobre o
bem-sucedido esquema de patrulhamento de ruas de Vilhena e me despacharam sem
contar nada sobre o que queria ouvir. Durante mais dois dias, busquei por todos
os meios conversar com os policiais. Nunca tomei tanto perdido na vida. Saí de
lá puto, sabendo que aquela apuração estava encerrada.
Era o fim irritante de um trajeto que começara de maneira
tensa. No começo de 2011, entrevistei Claudemir Gilberto Ramos, sem-terra
condenado a oito anos e meio de prisão pelas mortes de dois policiais vitimados
no caso da Santa Elina. Filho de Adelino, ele se recusava a cumprir a pena, que
considerava injusta. Aquela narrativa, tão cheia de lacunas, foi o que me
motivou a entender melhor a história, contada no primeiro capítulo do livro,
compartilhado agora com os leitores.
Via Carta Capital - Por João Peres, da Agência Pública –
baixe o primeiro capítulo do livro Corumbiara, caso enterrado.
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