segunda-feira, 23 de novembro de 2015

ACABOU-SE O QUE ERA DOCE

Artigo de Fernando Gabeira
Semana brava, com desastre ambiental no Brasil, atentado em Paris. Ao chegar em casa, com as botas enlameadas, vejo que algumas pessoas me criticam porque não fiz discurso sobre Mariana. Se fizesse, reclamariam por Paris, se fizesse por Paris, reclamariam por Bagdá. Pensei que deixaria as patrulhas no universo analógico. Mas elas sobrevivem no mundo digital. Detalhes.
Na década de 80, esta frase me impressionou em Minas: olhe bem as montanhas. Eu a vi em muitos carros. Na minha interpretação, a frase completa seria essa: olhe bem as montanhas, antes que desapareçam.
Minas Gerais minerais, dizia Drummond, que nasceu em Itabira, na cidade toda de ferro em que as ferraduras batem como sinos.
Nessa viagem por Minas, levava na mochila o livro de Drummond e nele o poema “Canto mineral”:
“Minas exploradas
no duplo, no múltiplo
sem sentido,
minas esgotadas,
a suor e ais”
Vi uma montanha pela metade, em Mariana. A face escura da pedra, seus restos circulando em longos trens de carga era a Minas nos ferindo com “suas pontiagudas lascas de minério, laminados de ironia”. Dessa vez não bastava olhar apenas as montanhas. Os rios estão sumindo, alguns exauridos pela seca, e o Doce afogado pela montanha liquefeita, a lama mineral.
Sei que a hora pede discursos, comunicados, “não vamos mais tolerar” etc. Mas o Rio Doce para mim não é apenas uma palavra de ordem. É uma memória azulada que queria compartilhar com os amigos que moram na cidade onde ele se forma: Rio Doce. É uma cidade de três mil habitantes que não conhece um assassinato há 50 anos. Calma, limpa, 100% saneada, ônibus escolares cruzando suas ruas desertas. Povo e polícia se entendem bem, a cidade se protegeu da violência. O lugar onde o Rio Doce se forma era uma atração turística. Coberto de lama.
A orla do Doce, ponto de lazer da cidade, foi devastada. A mais bonita fazenda da região, a Porto Alegre, coberta de lama. A morte violenta, que os habitantes não viam há meio século, apareceu na forma de nove cadáveres arrastados desde Mariana. Em Rio Doce, pensei também Paris, não para agradar as patrulhas, mas porque Paris para mim também não é apenas uma bandeira, é uma cidade onde passei alguns dos melhores momentos de minha vida. A conclusão a que cheguei na pousada da Cachoeira, quase toda ocupada por bombeiros que vieram de Ubá, é de que não existe uma defesa inexpugnável contra o mundo exterior.
Uma cidade tão limpa invadida pela lama, tão pacífica, recebendo nove corpos, uma cidade luz atacada pelas trevas do extremismo religioso de bandeiras negras. Num momento como esse, de terror, desastre ambiental, corrupção, cinismo, não há como negar o mundo que temos. E encará-lo de frente. Empurrar com a barriga significa mais força para o terrorismo do ISIS, mais desastre ambiental, mais impunidade.
“Ideologia, eu quero uma pra viver.” Esse verso de Cazuza passou muitas vezes pela minha cabeça. Conheci Cazuza em 1986 e o visitei depois em Petrópolis. Por tudo o que sei dele, o termo “ideologia” aqui não significa uma visão de mundo totalizante, que tudo explica, explica, às vezes antes de acontecer, às vezes sem sequer examinar os fatos.
“Ideologia” aqui, creio, significa um sentido na vida, ainda que precário e incompleto. Este sentido está em falta no país: somos um gigante desengonçado, que não discute nem sabe para onde vai. Vivemos uma crise econômica, política, ética e ambiental — um bicho de quatro cabeças. É feio, mas está aí. É absolutamente necessário combatê-lo de forma integrada.
Temos uma oposição que não aponta o caminho, mas não se dispõe a sair perguntando. Um governo cujo sonho de consumo é nos entupir de carros e eletrodomésticos e comprar refinarias enferrujadas, para chamar de “minha Ruivinha”. A única saída é conversar por baixo, discutir intensamente, embora isso seja contraditório com a rotina dura do trabalho.
Olhe bem as montanhas. Ainda bem que olhei o Doce muitas vezes antes de vê-lo em seu caixão de barro. A contemplação apenas me entristece. Preciso fazer mais, sem patrulhas nos calcanhares. Cada um sabe de seus limites, embora, de vez em quando, precise ultrapassá-los. As pessoas da minha geração talvez não vejam mais o Rio Doce. Visitei um dos seus formadores, o Piranga; águas normais, apenas um pouco castigadas pela seca. Na Serra do Caparaó subi pelas cabeceiras do rio José Pedro. Também está raso, mas joga água limpa no Doce, através do Manhuaçu.
Isso é uma esperança para as novas gerações. O Doce pode sair da UTI em alguns anos. Depende de nós, assim como enfrentar o monstro de muitas cabeças.
O país que conhecemos está desaparecendo. É preciso uma aliança com os que podem desfrutá-lo depois de nós, com base numa visão ainda que modesta de nosso futuro comum.
Um rumo, um sentido até que fariam bem nesse vale enlameado.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 21/11/2015
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