Pensei que esta seria uma semana de trégua. E é, de certa
forma, no plano nacional. Na verdade, o atentado em Bruxelas mostrou a face
covarde da guerra. Ao considerá-la assim, uma semana de trégua, lembrei-me de
uma grávida que entrevistei num bairro infestado de mosquitos em Aracaju:
“Graças a Deus, o que tive foi chikungunya”.
Os fatos da semana passada não me permitiram tratar de
escutas telefônicas. Tenho experiência disso. Nas eleições de 98, um repórter
ouviu ligação minha e divulgou uma frase em que dizia que uma deputada estadual
era suburbana. Isso num contexto sobre implantação de aterros sanitários, que,
para mim, deveriam ter um enfoque metropolitano. Reclamei de forma, mas não me
detive nisso porque havia algo mais importante a tratar: o conteúdo.
O adversário na época, Eduardo Paes, fez uma grande campanha
em torno disso. Vestiram camisetas com a inscrição Sou suburbano com muito
amor. Ainda hoje as fotos me fazem rir.
A reação de Dilma e seus defensores foi dissociar a forma do
conteúdo e discutir só aquela. A tentativa de explicar o diálogo gravado foi
ridícula, segundo o New York Times. Patética para outros, que observam o fluxo
dos últimos acontecimentos. No caso, não se trata de um grampo, mas de levantar
o sigilo de um processo. Moro investigava Lula e o conjunto das gravações
indicava a busca de um ministério para escapar do processo. O último áudio
apenas foi uma espécie de CQD.
A Lava Jato é, para mim, a maior e mais bem-sucedida
operação realizada pela polícia brasileira. Sua atuação é espetacular, mas, se
comparamos com o futebol, é possível jogar uma partida magnífica e ainda assim
cometer algumas faltas.
No meu entender, elas estão no levantamento do sigilo de
áudios que tratam de assuntos pessoais, sem importância real no processo. Eu
deparo com esse problema no trabalho cotidiano. Outro dia entrevistei uma
cozinheira e ela disse que se casou com o primo por falta de alternativa.
Minutos depois me procurou para que apagasse esse trecho da entrevista. Atendi
imediatamente. Que interesse teria isso para a história que estava para contar?
Nenhum.
O que é irrelevante para o público pode ter enorme
repercussão na vida da pessoa. Uma frase mal colocada, absolutamente inócua
para o espectador, pode desatar inúmeros dramas familiares, suspeitas,
rancores.
Com escritores, juristas, tanta gente de talento defendendo
Dilma, ninguém trata do conteúdo do processo levado por Moro, o que, na
verdade, interessa mais ao povo. Falam em defesa da democracia, mas ignoram o
mensalão, o escândalo na Petrobrás, dois ataques violentos à própria
democracia.
Fui deputado alguns anos e me sinto enganado por ter de
discutir com parlamentares que foram comprados pelo governo. Não há debate
real. As posições foram pagas no guichê do palácio. Para mim, isso é a real
negação do processo democrático. E os dados estão aí: a Petrobrás foi arrasada,
apenas em 2015 teve um prejuízo de R$ 43,8 bilhões; só a Operação Lava Jato
conseguiu bloquear R$ 800 milhões no exterior.
Que tipo de democracia é esta em que você compete com
campanhas milionárias sustentadas com grana roubada de empresas estatais, via
propinas das empreiteiras?
As delações premiadas da Andrade Gutierrez e de Marcelo
Odebrecht vão demonstrar tudo isso. No caso de Odebrecht, é preciso ver ainda o
que tem a falar, porque sua resistência acabou provocando um avanço da Lava
Jato sobre os segredos mais guardados da empresa.
Outra discussão que reservei para a semana de trégua: a
condução de Lula. Tenho amigos que a criticam, na verdade, tenho amigos que até
são contra o impeachment. A Lava Jato, a esta altura, fez 130 conduções
coercitivas. Mas Lula estava disposto a depor, dizem. E os outros, se chamados,
também não estariam dispostos? O que determina a medida é análise dos fatos, a
lógica da investigação.
Outros lembram: Lula é um símbolo. Respondo que a lei vale
para todos. Está escrito na Constituição. Teríamos de redigir a emenda: a lei
vale para todos, menos para os símbolos.
Aliás, o termo símbolo é muito vago. Eventualmente um homem
desconhecido pode se tornar símbolo de algo. O pedreiro Amarildo transformou-se
num símbolo. Um jovem negro assassinado os EUA vira símbolo do conflito racial.
É surpreendente ver como Lula se transformou, na realidade,
num líder conservador: a esperança dos corruptos de melar a Operação Lava Jato.
Deixando de lado o machismo, que não é novidade, suas falas gravadas mostram um
personagem típico: sabe com quem está falando? Seu ataque à autonomia da
Polícia Federal é simplesmente reacionário. Ainda mais, articulado com frases
em que condena a busca de autonomia em outros setores. “Só Dilma não consegue
governar, não tem autonomia”, diz ele.
Uma visão realmente política não culpa a oposição pela
imobilidade do governo. Seria o mesmo que Lenin, derrotado num bar do Quartier
Latin, afirmar que a revolução fracassou por causa dos mencheviques.
Dilma não consegue governar, concordo com Lula. Mas o
problema não está na oposição, está nela. Lula reconhece isso nos seus
discursos, pedindo que Dilma sorria pelo menos algumas vezes. Acho um apelo
inútil, como os que encontramos em algumas lojas: sorria, você está sendo
fotografado.
Se Lula reconhece que Dilma não é capaz de presidir, terá de
reconhecer também que errou ao lançá-la. E toda essa imensa máquina petista
teria de compreender que não se inventa um quadro político, ele se faz na
história cotidiana, ao longo de mandatos, no fascinante jogo político, um jogo
tedioso para quem não gosta dele.
Isso são reflexões de uma semana de trégua. Não há futuro
para o governo. Toda a sua energia se consome na defesa do impeachment, no medo
da Lava Jato. Cada dia que um projeto fracassado consegue sobreviver é mais um
dia em que o Brasil afunda. Isso parece não ter nenhuma importância para eles.
Lamento.
Artigo de Fernando Gabeira, publicado no Estadão, 25/03/2016
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