Artigo de Fernando Gabeira
Domingo passado foi um dia terrível em todo o mundo. Choro,
morte, luto, desespero na boate Pulse, em Orlando, na Flórida. Os debates
televisivos só falavam nisso, na trágica morte de 49 pessoas, nos feridos
levados às pressas para o hospital. Três temas emergiram nas primeiras horas do
atentado: controle de armas, homofobia e extremismo religioso. Pareciam
entrelaçados, estimulavam novas sugestões sobre políticas públicas.
Olhava tudo aquilo com um pouco de ceticismo. Não subestimo
essas políticas. Era, realmente, o que podia ser discutido nas primeiras horas.
No entanto, como se tratava de um ato de um lobo solitário, sabia que faltava
uma dimensão ao debate e ela só seria incorporada com o tempo: a personalidade
do assassino.
É cada vez mais necessário discutir também o perfil dos
lobos solitários que se dedicam ao terror. Indivíduos são singularidades
únicas, sei como é difícil encontrar semelhanças entre seus atos isolados,
estabelecer algum padrão no seu comportamento.
A Pulse é uma boate frequentada por gays. Era indiscutível o
traço homofóbico na personalidade de Omar Marteen. A experiência sobre
assassinatos de gays no Brasil indica que parte deles é executada por parceiros
ocasionais.
Em muitos desses assassinatos, o matador usa facas e
tesouras e aplica na vítima centenas de golpes. Sempre coloquei essa questão ao
abordar o tema: se apenas algumas facadas bastam para matar, por que desferir
centenas delas? Quem o criminoso estava matando depois de ver que o outro
estava morto? Mesmo sob o risco de ser chamado de leviano, respondi a essa
questão com naturalidade: era preciso matar, além da vítima, a própria
homossexualidade. Em outras palavras, certo tipo de homossexual reprimido é,
potencialmente, uma grande ameaça àqueles que vivem de peito aberto sua
orientação sexual.
As horas foram se passando, e o pai de Omar declarou que o
filho se revoltou ao ver dois homens se beijando em Miami. Uma ex-mulher
declarou que Omar a espancava com regularidade. Finalmente, no meio da semana,
soubemos que o assassino frequentou a boate gay não apenas como um observador,
mas integrado na atmosfera. Omar, ao que tudo indica, era gay.
As declarações do pai revelam que a educação na família
afegã condenava a homossexualidade. O pai admite que os gays devam ser punidos,
mas apenas por Deus. O mergulho na personalidade dos assassinos não significa
que políticas públicas sejam inúteis. Mas, certamente, pode torná-las mais
eficazes.
Nesse caso específico, a educação para a tolerância talvez
resultasse em algo melhor. No entanto, é uma questão delicada. Grande parte das
famílias considera que deva ter o monopólio da educação sexual dos filhos.
O que fazer? O governo da esquerda lançou cartilhas, mas
encontrou uma grande resistência. A resistência não é apenas nacional. O debate
sobre uso de banheiros por transgêneros nas escolas americanas também foi
intenso. A única saída seria transformar a educação sexual em facultativa nas
escolas públicas, semelhante à educação religiosa.
Sei que é uma proposta conciliadora, que suscita a rejeição
dos dois lados. Mas há duas maneiras de se avançar nesse campo. Uma delas é
através da negociação, de um jogo em que todos ganham. A outra é através do
conflito, do debate emocionado. O segundo caminho é o que tem sido
experimentado no Brasil, sobretudo a partir dos bate-bocas parlamentares. A
sensação que tenho é que o debate só serviu para exacerbar o conflito. Decisão
real mesmo só quem tomou foi o STF.
Alguns lobos solitários são produto da repressão
interiorizada. Liberá-los dessa força sinistra contribui para reduzir os
assassinatos. Finalmente, o debate sobre controle de armas merece um olhar mais
brasileiro. Nos EUA, com todo o liberalismo, mata-se menos, proporcionalmente,
do que no Brasil. Não adianta proibir quando não existem mecanismos de
controle. O proibido acaba reaparecendo no comércio clandestino.
Numa viagem que fiz à Colômbia, constatei, em Medellín, que
a polícia na terra de Pablo Escobar fazia constantes batidas para apreender
armas ilegais. Às vezes, parava um ônibus e revistava todo mundo. O problema
das constantes revistas é o incômodo que trazem aos passageiros e transeuntes.
Seria necessário gastar tanta energia para explicar quanto para revistar. Mesmo
com os modernos detectores portáteis. Buscar saídas depois de algo trágico é um
esforço humano para controlar o imprevisível. Todos sabemos que é difícil
evitar que um maluco saia matando gente.
Na véspera da I Guerra Mundial, terroristas adiaram o
atentado em Sarajevo porque havia crianças na carruagem do arquiduque. Hoje
explodem tudo que há pela frente: crianças, velhos, explodem até a si próprios.
Omar não nos engana. E certamente não enganará Alá e as 70 virgens que o
estariam esperando no céu.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 19/06/2016
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