Do O Globo
RIO — Na campanha, o senador Marcelo Crivella (PRB) não diz o que escreveu. Em seu livro “Evangelizando a África”, em que faz um relato dos dez anos em que viveu no continente, o candidato a prefeito que hoje se apresenta como tolerante e ecumênico fez pesadas críticas a praticamente todas as religiões, apresentadas como “diabólicas”, e classificou a homossexualidade de “conduta maligna” e de “terrível mal”.
RIO — Na campanha, o senador Marcelo Crivella (PRB) não diz o que escreveu. Em seu livro “Evangelizando a África”, em que faz um relato dos dez anos em que viveu no continente, o candidato a prefeito que hoje se apresenta como tolerante e ecumênico fez pesadas críticas a praticamente todas as religiões, apresentadas como “diabólicas”, e classificou a homossexualidade de “conduta maligna” e de “terrível mal”.
Na publicação, afirma que a Igreja Católica e outras
religiões que se denominam cristãs “pregam doutrinas demoníacas.” Segundo ele,
a Igreja Católica “tem pregado para seus inocentes seguidores a adoração aos
ídolos e a veneração a Maria como sendo uma deusa protetora”. Crivella dispara
também contra o espiritismo, o hinduísmo e religiões africanas (que, segundo
ele, abrigam “espíritos imundos”).
Com o título de “Mutis, Sangomas and Nyangas: Tradition or
Witchcraft?” (“Mutis, sangomas e nyangas: Tradição ou feitiçaria?”), o livro
foi publicado em inglês em 1999, quatro anos depois de Sérgio Von Helde, então
bispo da Igreja Universal do Reino de Deus — a mesma de Crivella —, ter chutado
uma imagem de Nossa Senhora Aparecida durante um programa da TV Record. Na ocasião,
Von Helde classificou a imagem de boneco feio, horrível e desgraçado.
A edição brasileira foi lançada pela Editora Gráfica
Universal, que pertence à Igreja Universal, em 2002, ano em que Crivella seria
eleito senador pela primeira vez. Citado em pelo menos três publicações
estrangeiras que tratam da atuação da Universal e de outras igrejas evangélicas
na África, o livro, no Brasil, parece ter sido condenado à clandestinidade.
Uma pesquisa no Google revela que “Evangelizando a África” é
citado apenas em sites de livrarias que vendem publicações usadas e em duas
edições de “Senadores — Dados biográficos”, do Senado Federal. Por telefone, a
editora informou que o livro está esgotado.
A edição brasileira traz diversas fotos de cultos, alguns
deles com a presença de um jovem Crivella no comando de rituais de exorcismo.
Quando escreveu a obra, ele era um dos responsáveis pela implantação de sua
igreja na África.
Entre outros ataques, o senador diz que religiões africanas
praticam o sacrifício de crianças. Afirma também que “as tradições africanas
permitem toda sorte de comportamento imoral, até mesmo com crianças de colo.”
Ele classifica de “ritual satânico que deve ser evitado” a
tradição de se comer alimentos relacionados a práticas religiosas como o
sacrifício de animais. Segundo Crivella, “quando a pessoa engole aquela comida,
ela está, de uma certa forma, aceitando o espírito daquele ídolo para o qual a
comida foi sacrificada.”
O bispo, hoje licenciado, da Igreja Universal também afirma
que o trabalho de sacerdotes de religiões africanas — chamados no livro de
sangomas e nyangas — “se tornou um grande negócio na África, porque é motivado
pelo maldito amor ao dinheiro”. Na introdução à edição brasileira, os editores
afirmam que sangomas e nyangas “são feiticeiros e bruxos, conhecidos no Brasil
como pais, mães e filhos-de-santo.”
“Evangelizando a África” responsabiliza práticas religiosas
pelas dificuldades do continente ao dizer que “na miséria e na pobreza, vemos o
ódio do diabo e seus demônios que trabalham descaradamente através de tantas
seitas e religiões”.
A Igreja Universal não é citada como uma religião: “Queremos
na realidade, apresentar o Deus vivo, o Criador dos céus e da terra, e a Sua
Santa Palavra”, escreve Crivella. A condenação a outras manifestações de fé é
bem ampla: “Ao redor do mundo, em todas as nações, achamos centenas de crenças,
seitas e religiões. Elas podem se diferenciar uma das outras, mas todas têm um
ponto em comum: levar as pessoas a adorarem e a aceitarem os espíritos”.
Ao tratar das religiões orientais, o evangelho de Crivella é
categórico: “No mundo amarelo, os espíritos imundos vêm disfarçados de forças e
energias da natureza”. Situação parecida, afirma, com a verificada no “mundo
vermelho”, onde vivem os indianos, “escravos de uma falsa religião”. Para o
candidato, os hindus são proibidos de comer carne de vaca apenas para que o
alimento seja farto na mesa dos ricos.
No livro, Crivella diz que “no mundo hindu” o sacrifício de
crianças é praticado como forma de obtenção de riqueza, prática que seria
induzida por “gurus”. “Os rituais variam, mas a ênfase é sempre no derramamento
de sangue seguido da ingestão do sangue quente de uma criança inocente”, conta.
Segundo ele, “Cortar a parte de cima de um crânio é o método requerido”.
Para ele, o diabo e seus demônios precisam de corpos para se
manifestar, daí sua quase onipresença entre nós. Os tais espíritos, assegura
Crivella, são poderosos. Ele chega a recomendar cuidado com pessoas “possuídas
por espíritos”, já que a transmissão do efeito diabólico pode ocorrer até mesmo
durante a prática sexual: “Uma mulher cristã solteira que se casa com um hindu,
ou com um homem que invoca os ancestrais e os espíritos, pode se tornar
habitação dos mesmos espíritos que o marido adora”.
A julgar pelos ensinamentos de Crivella, governos poderiam
investir bem menos em saúde se adotassem, de maneira preventiva, políticas
públicas baseadas na expulsão dos demônios dos corpos dos cidadãos. De acordo
com ele, “os remédios e médicos tratam dos efeitos, mas a causa de todos os
males, que é espiritual, somente pode ser tratada com o poder de Jesus”.
Para respaldar sua tese sobre a relação entre doenças e
demônios, Crivella cita na publicação o tio Edir Macedo, fundador da Igreja
Universal e autor de um livro, “Orixás, caboclos e guias”, que, lançado em
1987, demoniza as religiões de matriz africana. No trecho citado na obra do
sobrinho, Macedo diz que toda doença tem uma causa, “e essa causa é sempre um
vírus, um bacilo, um germe ou uma bactéria”.
Para Macedo, esses
seres causadores de doenças não vêm de Deus, “pois Ele não é destruidor”.
Segundo o bispo, para que um micro-organismo atue “é necessário que haja uma
força dentro dele; um espírito destruidor, e não podemos identificá-lo com
nenhuma outra coisa, senão como uma força demoníaca”. Crivella faz, porém, uma
ressalva: “Nem todas as pessoas doentes estão possessas por um espírito imundo,
mas todas as doenças estão profundamente relacionadas com os espíritos
imundos”.
Demônios são responsabilizados por vícios e pela
homossexualidade. O senador diz que gays não devem ser tratados com menosprezo
ou discriminação, mas ressalva que “milhões são vítimas desse terrível mal,
vivendo sem paz e numa condição lamentável para o ser humano.”
Os tais espíritos também podem ser transmitidos para a
geração seguinte, adverte o bispo: “O pai viciado e adúltero provavelmente
passará o mesmo espírito para o seu filho”, alerta. Segundo ele, isso explica o
fato de “um pai de respeito” passar, de repente, a ser homossexual. “E quando
ele morre, o espírito se manifesta no seu filho que prontamente negligencia sua
esposa e seus filhos para prosseguir nessa conduta maligna”.
Para marcar o rompimento com o diabo, Crivella estimula a
destruição de objetos de culto: “Quebre completamente todos os laços com o seu
passado (...). Destrua ou leve para a igreja todos os objetivos de feitiçaria,
mutis, roupas, fotos, ossos, ishobas e etc., para que os pastores destruam”.
O livro não estabelece possibilidade de diálogo entre as
religiões, deixa evidente uma divisão entre “o reino de Deus e o reino do
diabo” e convoca para uma batalha em nome da fé: “Não existe meio-termo. Quem
está com Deus luta contra o diabo e seus demônios”, prega.
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