Artigo de Fernando Gabeira
Nos recentes distúrbios no Espírito Santo, algo me
impressionou especialmente: um carro de som rodando pelas ruas desertas tocando
a música “Imagine”, de John Lennon, e sendo aplaudido das janelas pelos
moradores amedrontados. Era uma conjuntura de violência e terror, e pelas ruas
ecoava uma canção imaginando a paz entre todos os povos. Interessante a
trajetória dessa música pelos tempos, como sobrevive como uma utopia nas ruas
de Vitória.
E como a realidade se distancia do sonho de John Lennon e de
milhões de pessoas no mundo. Difícil imaginar que não exista um inferno sob nós
se da própria superfície da Síria chegam imagens tão trágicas. Difícil imaginar
que não existam países com a explosão dos nacionalismos, a começar pelos
Estados Unidos. A performance de Trump aumenta a instabilidade no mundo. Na
semana passada, inventou um atentado terrorista na Suécia. A resposta dos
suecos foi bem-humorada: um ex-primeiro-ministro perguntou a Trump pelo Twitter
o que ele andava fumando. De qualquer maneira, uma informação dessas na boca de
um presidente dos Estados Unidos trouxe desgaste à imagem da Suécia, um país
que absorve os imigrantes com generosidade. Posso dizer com experiência
própria, pois vivi lá, precisamente entre imigrantes. Ao mesmo tempo em que
Trump mostra seu desequilíbrio, outros sinistros personagens se movem no
cenário mundial.
Assistimos ao vivo na tevê ao envenenamento de Kim Jong-nam,
o irmão do ditador norte-coreano, Kim Jong-un. Vimos a mulher se aproximar,
envolvê-lo com um lenço e, em seguida, o homem batendo com as mãos no rosto,
aflito, tentando explicar o que houve. Morreu logo depois. O veneno presente no
tempo dos Bórgias ainda é usado como arma pelo estado. O ex-espião russo
Alexander Litvinenko foi assassinado com uma xícara de chá em Londres. No chá
havia polônio 200, uma substância radioativa, usada em reatores nucleares.
Alexander levou tempo para morrer. Os norte-coreanos usaram algo quase
instantâneo.
Neste mundo mergulhado em violência é cada vez mais difícil
ignorar o inferno. O articulista Ishaan Tharoor, do “Washington Post”, mostra
que, ao mesmo tempo em que Trump mencionava um atentando inexistente na Suécia,
um atentado real acontecia no Paquistão, matando 73 pessoas. Foi uma explosão
realizada por um membro do Exército Islâmico contra um templo sufi. Os sufis
são de um ramo do próprio islamismo. Intelectualizados, poéticos, com profetas
peregrinos, sábios de pé no chão, os sufis são “tudo o que o Estado Islâmico
odeia”, ele conclui. Os sufis são sonhadores e, ao lembrar do carro de som nas
ruas de Vitória, pensei: os tempos não estão nada bons para os sonhadores. Como
em certo momento, os tempos também não foram bons para o próprio John Lennon.
Mas, ainda assim, a canção “Imagine” sobrevive porque, conforme se viu em
Vitória, quanto maior a dificuldade mais temos vontade de cantá-la.
No Brasil, somos forçados a fazer uma espécie de corte nos
sonhos, uma equivalência simbólica ao corte nos gastos. No entanto, é possível
sonhar, sobretudo agora. É uma conversa de réveillon que agora tem um outro
sentido prático: o ano começa realmente depois do carnaval. E 2017 será vital
para se achar um novo caminho que nos tire dessa área de instabilidade, crise
social, desemprego, violência crescente e sistema político vivendo num mundo
paralelo. O ato inaugural do ano será a quebra do sigilo das delações de 77
funcionários da Odebrecht. Depois da tsunami, será possível recolher os cacos e
reconstruir o sistema político.
A tsunami atinge vários países do continente. Mas é no
Brasil que tudo está sendo investigado, foi aqui que o sistema de corrupção foi
instalado e exportado como um produto nacional. Muitos temem que a sacudida no
universo político comprometa a retomada econômica. Acho que são complementares.
De que adianta chegar na frente com mais empregos, um pouco mais de dinheiro no
bolso e com a mesma farsa política dominando o país? Existem muitos projetos em
gestação, muitos sonhos na gaveta. Eles dependem de uma estabilidade que nos dê
alguma confiança no país, como já tivemos lá atrás, com a conquista de eleições
diretas para a presidência. Do governo Collor para cá constatamos que eleger um
presidente pelo voto direto não é tudo. Será necessário construir uma atmosfera
política em que o presidente possa se mover com decência. Uma atmosfera que
reduza a distância abissal entre sociedade e representantes pagos por ela.
Tudo acaba na Quarta-feira de Cinzas. Mas tudo começa também
depois dela. Nada melhor que circular o carro de som tocando “Imagine”, mesmo
sabendo que a realidade vai contemplar apenas uma fração mínima de nossos
sonhos.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 26/02/2017
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