Artigo de Fernando Gabeira
Sei que mais de um milhão de pessoas visitaram o Rio. Senti
um cheiro mais forte de pipi nas ruas em que caminho. Mas isso é quase tudo que
retive do carnaval. No momento em que a Nasa anuncia a descoberta de sete novos
planetas, perdi a chance de explorar esse estranho planeta de celebridades que
inundam as páginas dos sites de notícias nacionais. O velho Brasil estava
presente no tratamento dos dois desastres com alegorias de escolas de samba na
avenida.
Depois da queda, a discussão sobre as regras do jogo, que
praticamente não existiam. Trump suavizou-se com o carnaval, falando em manter
milhões de imigrantes nos EUA, desde que não tenham cometido crimes. Ótima
notícia para os brasileiros que vivem lá. As pesquisas indicavam a baixa
popularidade de Trump. Na sua equipe, já se falava em algum tipo de ajuste com
a realidade. Trump dizia que as pesquisas eram falsas, mas foi esperto o
bastante para não acreditar no que dizia.
A cerimônia de Quarta-Feira de Cinzas mais próxima do Brasil
foi a fogueira das sardinhas na Espanha. Todo o ano repetem um ritual de queima
das sardinhas, simbolizando uma renovação, com os erros do passado ardendo nas
chamas. A fogueira de cinzas começou com o depoimento de Marcelo Odebrecht. Se
corresponde ao que vazou, não vai balançar a chapa Dilma-Temer, mas o próprio
sistema eleitoral brasileiro. Na esfera do governo, as coisas ficaram mais
confusas com o depoimento do ex-assessor especial de Temer, José Yunes. Ele diz
que recebeu uma encomenda para Padilha no seu escritório, entregue pelo doleiro
Lúcio Funaro, certamente o réu mais violento da Lava-Jato, pelo menos
verbalmente. Ora aparece ameaçando comer fígados literalmente, ora aparece
ameaçando incendiar a casa de um cúmplice com as crianças dentro.
Pelo conjunto dos depoimentos conhecidos, R$ 10 milhões da
Odebrecht teriam ido para as mãos do PMDB, depois de uma reunião com Temer. A
encomenda de Padilha deveria, pelos cálculos, conter R$ 1 milhão. Yunes afirmou
que era apenas um envelope. Em certo momento usou a palavra pacote, depois
recuou para envelope. De fato, num envelope não cabe um milhão. Certamente não
continha tíquetes de refeição nem vales-transporte. Mas ainda assim há algo que
não bate.
Desde o princípio imaginei um cenário em que Temer teria
como foco uma necessária reforma na economia, mas sempre jogando ao mar seus
ministros comprometidos com a Lava-Jato. Nessa análise de princípio de governo,
afirmei que Temer precisava ficar atento para a hipótese de, em algum momento,
também ele ter de se jogar ao mar. Pelo curso dos processos que o envolvem, o
cenário mais provável é de que conclua o governo, mas com uma equipe muito
diferente do começo. Seu ponto de estabilidade é o apoio do Congresso. Ali,
cobra-se um preço alto pelos votos: cargos, verbas, prestígio. Mas a fogueira
vai ficar mais intensa quando abrirem os depoimentos dos 77 dirigentes da
Odebrecht. O próprio Congresso será abalado. Assim, abalados e estremecidos,
Temer e o Congresso precisam achar uma saída para a economia — é a maneira de
atenuar o julgamento negativo sobre eles. Muitos gostariam de congelar ou
retardar a dinâmica política para que as mudanças econômicas fluíssem mais
rapidamente.
Mas nessa fogueira que a Quarta-Feira de Cinzas inaugura não
queimaremos sardinhas, mas um sistema político-partidário e um processo
eleitoral pra lá de Marrakesh. Não adianta se fixar na economia. As coisas
andam juntas. Há uma demanda real por mudanças, e hoje ela se expressa na
condenação do chamado foro especial. Não vejo por que isso pode atrapalhar o
rumo da economia. Muito menos me preocupa o fato de os manifestantes não terem
um líder ou um partido para orientar sua trajetória. Ou acham seu caminho e
formam seus líderes no processo de erros e acertos, ou param para esperar um
líder, um Dom Sebastião. E preciso fazer os cálculos contando com a Lava-Jato
completando seu trabalho, no ritmo de suas descobertas e com os manifestantes
na rua questionando os mecanismos legais que impedem a punição dos políticos.
As ruas e a Lava-Jato acabam interagindo, e isso torna mais
urgente a mudança. O único senão que tenho sobre essas manifestações é que são
marcadas com muita antecedência. Há momentos em que a mobilização é mais fácil.
Em Madri, uma manifestação convocada em 48 horas mudou o rumo das eleições após
um atentado terrorista. Os prazos mais longos são cheios de altos e baixos,
momentos de relativa frieza. Eles comportam também fluxos e refluxos na
disposição coletiva. Mas, a julgar pelo que aconteceu no continente, as
delações de Odebrecht incendeiam a atmosfera política.
Possivelmente, em março, com todos os debates que elas vão
suscitar, o momento esteja mesmo maduro para uma investida contra o foro
privilegiado. E não só para punir culpados. Mas para filtrar o processo.
Quantos não buscam um mandato só para escapar da Justiça?
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 05/03/2017
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