terça-feira, 23 de maio de 2017

OS SEGREDOS DO MARQUETEIRO

Da ÉPOCA
João Santana foi recebido com pompa em Brasília por um carro do governo federal que o aguardava no aeroporto. Faz tempo. Foi em 24 de agosto de 2005. O então presidente Lula o esperava em uma reunião no Palácio do Planalto, da qual também participou o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. Era uma emergência. Treze dias antes, o ex-sócio de Santana, Duda Mendonça, admitira à CPI dos Correios ter recebido cerca de R$ 10 milhões no exterior do empresário Marcos Valério, como pagamento pelos serviços prestados para a vitoriosa campanha presidencial de Lula de 2002. Aliados e até oposicionistas ficaram estarrecidos. Duda chorou ao admitir os volumosos pagamentos de caixa dois, que incluíam dinheiro vivo. Havia medo até de um pedido de impeachment de Lula. Seu então chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, telefonou a João Santana, que trabalhava na Argentina.   No Palácio, Lula e Santana conversaram na presença do então ministro da Fazenda, Antonio Palocci. “Pense, então, o que você acha que está certo ou errado”, disse Lula. “Não se preocupe: do ponto de vista de honorários, Palocci resolve com você.” Se há um momento zero, quando se reúnem pela primeira vez os elementos que darão combustão aos governos petistas fazendo-os funcionar por mais de uma década dali adiante, é esse com Lula, Palocci e o publicitário João Santana juntos no Planalto. Definiu-se ali um reinado que terminou oficialmente na quinta-feira, dia 11, quando o ministro Edson Fachin liberou ao Brasil o conteúdo dos depoimentos de delação premiada firmados por Santana e sua mulher e sócia, Mônica Moura. Estão lá, em texto, vídeo e provas, algumas das mais graves acusações de crimes contra Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff, nos esquemas de corrupção desvendados pela Operação Lava Jato. Patinhas, como Santana era conhecido, afirmou assertivamente aos investigadores que tanto Lula como Dilma tinham conhecimento e autorizavam os pagamentos via caixa dois a ele, feitos principalmente pela Odebrecht com recursos provenientes de corrupção. Sua mulher fez o mesmo, com detalhes de momentos em que Dilma tentou obstruir a Lava Jato. O salvador de 2005 terminou por ser o algoz em 2017.
Em seu depoimento à Lava Jato, de terno e gravata, João Santana se recorda daqueles tempos. Em uma noite de 2006, depois de sair do Palácio do Planalto, foi jantar na casa de Palocci. “Eu acredito que vai ter campanha (à reeleição) e que você vai fazer a campanha”, disse Palocci, segundo ele. Pouco tempo depois, o trabalho foi confirmado. Mônica Moura, mulher e sócia de Santana na Polis Propaganda e Marketing, acertou o preço:  R$ 24 milhões. “Voltei a frisar que era importante que fosse sem caixa dois”, disse Santana à Lava Jato, traumatizado com o que acontecera a Duda. Não foi – foi bem pior, vê-se hoje. Em agosto, com a campanha em andamento, Palocci avisou que o pagamento seria caixa dois: “Tem uma forma muito segura de vocês receberem caixa dois: você conhece a Odebrecht?”, disse Palocci, segundo Santana. “Ficou acertado que este pagamento seria quitado metade por Antonio Palocci, em espécie, como forma de dificultar o rastreamento (...), bem como a outra metade seria paga pela Odebrecht, através de transferência no exterior”, contou Mônica Moura, a companheira de vida, negócios e delação. As entregas de dinheiro vivo eram feitas a Mônica por Juscelino Dourado, ex-chefe de gabinete de Palocci, em uma loja de chá num shopping de São Paulo. “Dourado entregava sacolas com valores em dinheiro acondicionados em caixas de roupas, de sapatos etc.”, disse Mônica. Assim foram  pagos R$ 10 milhões. Lula, segundo Santana e Mônica, autorizou o acerto.
Quando o dinheiro atrasava, Santana reclamava a Lula, que apertava Palocci. “Este tipo de alerta foi feito com Lula em duas ocasiões: no final do primeiro turno de sua reeleição e, especialmente, no intervalo entre o primeiro e o segundo turno”, contou Santana. Palocci, então, foi acionado e colocou a Odebrecht para pagar. A reeleição veio e consolidou a parceria. Além da campanha, o marqueteiro passou a dar conselhos de comunicação política e até palpites em programas de governo. Profissional instintivo, com facilidade para captar uma ideia e criar slogans, nomes, Santana criou marcas para o governo. Foi dele o nome PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, o catado de projetos embalado a fim de criar uma imagem de combate à crise econômica após 2008 e impulsionar a imagem da provável sucessora de Lula, Dilma Rousseff.
Veio a campanha eleitoral de 2010, a primeira de Dilma Rousseff, e João Santana seria pago com recursos de caixa dois, em um acerto financeiro feito entre Mônica e Palocci. Dessa vez, Mônica foi orientada a procurar diretamente o executivo da Odebrecht Hilberto Mascarenhas, do Setor de Operações Estruturadas, o departamento de propina. João Santana e Mônica Moura não tinham como saber, mas davam o passo definitivo para ser enredados no sistema que os levaria à cadeia. Segundo Mônica, a empreiteira pagou R$ 15 milhões, dos quais R$ 10 milhões por meio de repasses no exterior e o restante em dinheiro vivo no Brasil.
Restou uma dívida de R$ 10 milhões, quitada somente anos depois. Coube ao ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto, hoje preso em Curitiba, resolver o assunto, mas o método usado para o pagamento deixou rastros que provocaram a derrocada do casal na Lava Jato. O lobista Zwi Skornicki, que atuava na Petrobras, pagou o equivalente a R$ 9 milhões em uma conta no exterior. Para receber, Mônica escreveu um bilhete a Zwi e seu filho Bruno, no qual ela os orientava a montar um contrato falso para justificar os repasses, e com as coordenadas da conta onde o dinheiro deveria ser depositado. O papel seria apreendido pela Polícia Federal em fevereiro de 2015.
No tempo em que o bilhete foi escrito, no entanto, Santana era o poderoso marqueteiro de todo o PT no Brasil e no exterior. Em 2008, Santana foi trabalhar para Mauricio Funes, candidato a presidente de El Salvador. Quando faltou dinheiro, ele procurou Lula e expôs o problema. O então presidente chamou o ministro Gilberto Carvalho e mandou que encaminhasse João Santana a Emílio Odebrecht. No contato, Emílio disse: “Deixa que eu falo com o Italiano”. Era a primeira vez que Santana ouviria o codinome de Palocci na Odebrecht. O dinheiro apareceu. E Santana sabia, obviamente, que era caixa dois, obtido com a anuência de Lula.
Sob Dilma, João Santana era o bruxo da imagem petista, mais importante que muitos ministros, instado a opinar sobre marcas, programas, ações da gestão e até pronunciamentos de Dilma. São dele os nomes Minha Casa Minha Vida e Mais Médicos. Doou o slogan “País rico é país sem pobreza”, usado no segundo governo Dilma. Aconselhava Dilma “de graça”, sem contrato formal com a Presidência da República. Publicamente e nos corredores do Palácio dizia que “não queria ter contrato público”, num falso discurso de viés ético. Passou a ser procurado por ministros em busca de proximidade com Dilma. Entre as mensagens apreendidas pela Polícia Federal em uma das fases da Lava Jato, o ex-ministro Mangabeira Unger pedia ajuda a Santana. “Você tem como dar um empurrão para eu falar com a PR?”, dizia Mangabeira. Em outra mensagem, o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Edinho Silva, repassa dados da CPMF e uma campanha sobre a Olimpíada. “A Presidenta pediu que eu ouvisse sua opinião sobre o que seria uma campanha para as Olimpíadas (...) Aguardo sua opinião.”
Em 2013, João Santana passou a frequentar almoços no Palácio da Alvorada, nos quais Dilma discutia o governo e como seria sua campanha seguinte. Era ouvido não só por Dilma, como por Lula e conselheiros como o ex-ministro Franklin Martins. Em um desses encontros, Dilma garantiu a Santana que não haveria problemas de pagamento na campanha de 2014 e colocou seu assessor Giles de Azevedo para intermediar o contato entre Mônica Moura e o ministro da Fazenda, Guido Mantega. O valor acertado era astronômico: R$ 105 milhões, sendo R$ 70 milhões pelas vias legais e o restante por meio de caixa dois – que, como das outras vezes, seria com a Odebrecht. Santana chegou a se queixar diretamente a Dilma de que o cronograma dos pagamentos não estava sendo obedecido. “A presidente Dilma Rousseff demonstrou irritação e disse que iria tratar diretamente do assunto com Guido Mantega. Após a conversa, os pagamentos começaram a ser feitos, mas jamais no ritmo prometido, o que ocasionou a permanência da dívida e outras cobranças”, relatou João Santana. De acordo com os delatores, a Odebrecht pagou R$ 10 milhões em espécie, no Brasil, e se recusou a pagar o restante no exterior, com medo do avanço da Lava Jato, que já rastreava as contas na Suíça ligadas à empreiteira.
João Santana rememorou um encontro com Dilma no Palácio da Alvorada, entre outubro e novembro de 2014. Nessa conversa pessoal, Dilma perguntou se a conta do marqueteiro na Suíça era “segura”. Queria saber, segundo entendeu Santana, se a Lava Jato poderia descobrir os pagamentos secretos da Odebrecht na conta Shellbill, do casal. O marqueteiro garantiu que a conta não seria rastreada – como não fora nos anos anteriores, nas campanhas na Venezuela, em El Salvador, em Angola e no Panamá, também financiadas pela Odebrecht na offshore suíça. Dilma disse que estava recebendo “recados indiretos” de Marcelo Odebrecht. O empreiteiro queria que Dilma interviesse, de alguma maneira, para barrar a Lava Jato. A presidente disse a Santana que não tinha condições de fazer isso.
A presidente estava preocupada com os rumos da operação. Sabia que a conta não estava tão segura assim. Aconselhou o marqueteiro a permanecer em Nova York, onde estava naqueles tempos, ocupado entre uma campanha na República Dominicana e férias intermitentes nos Estados Unidos. “Fica por lá”, disse Dilma, segundo o relato do marqueteiro. Ele interpretou a frase como um alerta: uma ação contra o casal era inevitável, e somente no exterior eles estariam protegidos das ações da Lava Jato. Nesse ponto, a delação traz alguns dos relatos mais comprometedores contra Dilma. Mônica Moura conta que, em novembro de 2014, recebeu um telefonema durante as férias em Nova York. Dilma precisava falar pessoalmente e com urgência. Mônica pegou um voo e foi recebida – sem pompa ou circunstância – em Brasília por Giles Azevedo. No Palácio da Alvorada, Dilma levou Mônica para conversar no jardim. Combinaram de conversar por uma conta de e-mail: uma escrevia um rascunho e o salvava. A outra entrava na conta, acessava o rascunho, lia e apagava. Mas a última informação recebida Mônica Moura salvou e, posteriormente, registrou em cartório, confirmando o dia em que o arquivo de texto havia sido criado: 19 de fevereiro de 2016, dias antes da deflagração da operação para prendê-los. A mensagem escrita por Dilma, em linguagem cifrada, dizia: “O seu grande amigo está muito doente. Os médicos consideram que o risco é máximo, 10. O pior é que a esposa, que sempre tratou dele, agora está com câncer e com o mesmo risco. Os médicos acompanham os dois, dia e noite”. A prisão de João Santana e Mônica Moura foi decretada em 22 de fevereiro de 2016. Eles se entregaram e passaram cinco meses na cadeia.
As provas entregues por João Santana e por Mônica jogam por terra o discurso de Dilma de que não se metia na Lava Jato e de que não tinha conhecimento de pagamentos ilícitos. Comprometem diretamente os dois ex-presidentes petistas em pagamentos cuja origem era a Odebrecht, que se locupletava com contratos milionários do governo federal e de suas estatais, notadamente a Petrobras. Os depoimentos de João Santana e Mônica Moura renderam 22 procedimentos no Supremo Tribunal Federal, a pedido do procurador-­geral da República, Rodrigo Janot. Um deles está a cargo do juiz Sergio Moro, para decidir se haverá investigação sobre o caixa dois na campanha de Dilma (leia a reportagem na página 46). João Santana e Mônica Moura terão de depositar R$ 3 milhões cada um e devolver os US$ 21,6 milhões depositados na conta na Suíça. A reclusão prevista no acordo não foi mau negócio: ambos cumprirão pena inicial de um ano e seis meses em regime fechado domiciliar e mais dois anos e seis meses entre regimes semiaberto e aberto em um condomínio de luxo à beira da praia no Litoral Norte da Bahia, no município de Camaçari, onde possuem residência. Se tudo correr dentro do previsto, no próximo ano já poderão frequentar o paradisía­co trecho da Praia de Arembepe defronte ao condomínio, praticamente privativa.
Em nota, a defesa de Dilma afirmou que João Santana e Mônica Moura prestaram “falso testemunho e faltaram com a verdade”. A assessoria do Instituto Lula informou que não comentaria os depoimentos de pessoas “que buscam benefícios judiciais”. O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins, afirmou em nota que as declarações de João Santana e Mônica Moura “nada provam”. O então advogado do ex-ministro Antonio Palocci, José Roberto Batochio, afirmou ser “temerário comentar depoimento cujo teor ainda não se conhece em detalhes”. Já a senadora Marta Suplicy, hoje no PMDB, disse se sentir “indignada”. “É uma mentira deslavada”, afirmou em nota, referindo-se ao trecho em que, segundo Mônica Moura, ela pede um emprego ao então marido Luís Favre. A Odebrecht informou, por meio de sua assessoria, que está colaborando com a Justiça nos países onde atua e que “já reconheceu seus erros, pediu desculpas públicas, assinou um Acordo de Leniência com as autoridades do Brasil, Estados Unidos, Suíça e República Dominicana, e está comprometida a combater e não tolerar a corrupção em quaisquer de suas formas”. O PT, que responde por João Vaccari Neto, disse que não vai se pronunciar. As negativas vão se suceder. E deverão ser devidamente analisadas. Mas João Santana é um componente importante do sistema operacional que fez rodar a máquina petista, conhecendo as intimidades eleitorais de Lula e Dilma. Unido à cúpula petista, com seus conselhos e produções de imagem, pareceu ter montado o moto-contínuo do poder. No papel de delator, o mago da fantasia política produziu um golpe de realidade em Lula, Dilma e no PT.
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