Da ÉPOCA
João Santana foi recebido com pompa em Brasília por um carro
do governo federal que o aguardava no aeroporto. Faz tempo. Foi em 24 de agosto
de 2005. O então presidente Lula o esperava em uma reunião no Palácio do
Planalto, da qual também participou o então ministro da Fazenda, Antonio
Palocci. Era uma emergência. Treze dias antes, o ex-sócio de Santana, Duda
Mendonça, admitira à CPI dos Correios ter recebido cerca de R$ 10 milhões no exterior
do empresário Marcos Valério, como pagamento pelos serviços prestados para a
vitoriosa campanha presidencial de Lula de 2002. Aliados e até oposicionistas
ficaram estarrecidos. Duda chorou ao admitir os volumosos pagamentos de caixa
dois, que incluíam dinheiro vivo. Havia medo até de um pedido de impeachment de
Lula. Seu então chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, telefonou a João Santana,
que trabalhava na Argentina. No
Palácio, Lula e Santana conversaram na presença do então ministro da Fazenda,
Antonio Palocci. “Pense, então, o que você acha que está certo ou errado”,
disse Lula. “Não se preocupe: do ponto de vista de honorários, Palocci resolve
com você.” Se há um momento zero, quando se reúnem pela primeira vez os
elementos que darão combustão aos governos petistas fazendo-os funcionar por
mais de uma década dali adiante, é esse com Lula, Palocci e o publicitário João
Santana juntos no Planalto. Definiu-se ali um reinado que terminou oficialmente
na quinta-feira, dia 11, quando o ministro Edson Fachin liberou ao Brasil o
conteúdo dos depoimentos de delação premiada firmados por Santana e sua mulher
e sócia, Mônica Moura. Estão lá, em texto, vídeo e provas, algumas das mais
graves acusações de crimes contra Lula e sua sucessora, Dilma Rousseff, nos esquemas
de corrupção desvendados pela Operação Lava Jato. Patinhas, como Santana era
conhecido, afirmou assertivamente aos investigadores que tanto Lula como Dilma
tinham conhecimento e autorizavam os pagamentos via caixa dois a ele, feitos
principalmente pela Odebrecht com recursos provenientes de corrupção. Sua
mulher fez o mesmo, com detalhes de momentos em que Dilma tentou obstruir a
Lava Jato. O salvador de 2005 terminou por ser o algoz em 2017.
Em seu depoimento à Lava Jato, de terno e gravata, João Santana
se recorda daqueles tempos. Em uma noite de 2006, depois de sair do Palácio do
Planalto, foi jantar na casa de Palocci. “Eu acredito que vai ter campanha (à
reeleição) e que você vai fazer a campanha”, disse Palocci, segundo ele. Pouco
tempo depois, o trabalho foi confirmado. Mônica Moura, mulher e sócia de
Santana na Polis Propaganda e Marketing, acertou o preço: R$ 24 milhões. “Voltei a frisar que era
importante que fosse sem caixa dois”, disse Santana à Lava Jato, traumatizado
com o que acontecera a Duda. Não foi – foi bem pior, vê-se hoje. Em agosto, com
a campanha em andamento, Palocci avisou que o pagamento seria caixa dois: “Tem
uma forma muito segura de vocês receberem caixa dois: você conhece a
Odebrecht?”, disse Palocci, segundo Santana. “Ficou acertado que este pagamento
seria quitado metade por Antonio Palocci, em espécie, como forma de dificultar
o rastreamento (...), bem como a outra metade seria paga pela Odebrecht,
através de transferência no exterior”, contou Mônica Moura, a companheira de
vida, negócios e delação. As entregas de dinheiro vivo eram feitas a Mônica por
Juscelino Dourado, ex-chefe de gabinete de Palocci, em uma loja de chá num
shopping de São Paulo. “Dourado entregava sacolas com valores em dinheiro
acondicionados em caixas de roupas, de sapatos etc.”, disse Mônica. Assim
foram pagos R$ 10 milhões. Lula, segundo
Santana e Mônica, autorizou o acerto.
Quando o dinheiro atrasava, Santana reclamava a Lula, que
apertava Palocci. “Este tipo de alerta foi feito com Lula em duas ocasiões: no
final do primeiro turno de sua reeleição e, especialmente, no intervalo entre o
primeiro e o segundo turno”, contou Santana. Palocci, então, foi acionado e
colocou a Odebrecht para pagar. A reeleição veio e consolidou a parceria. Além
da campanha, o marqueteiro passou a dar conselhos de comunicação política e até
palpites em programas de governo. Profissional instintivo, com facilidade para
captar uma ideia e criar slogans, nomes, Santana criou marcas para o governo.
Foi dele o nome PAC, Programa de Aceleração do Crescimento, o catado de
projetos embalado a fim de criar uma imagem de combate à crise econômica após
2008 e impulsionar a imagem da provável sucessora de Lula, Dilma Rousseff.
Veio a campanha eleitoral de 2010, a primeira de Dilma Rousseff,
e João Santana seria pago com recursos de caixa dois, em um acerto financeiro
feito entre Mônica e Palocci. Dessa vez, Mônica foi orientada a procurar
diretamente o executivo da Odebrecht Hilberto Mascarenhas, do Setor de
Operações Estruturadas, o departamento de propina. João Santana e Mônica Moura
não tinham como saber, mas davam o passo definitivo para ser enredados no
sistema que os levaria à cadeia. Segundo Mônica, a empreiteira pagou R$ 15
milhões, dos quais R$ 10 milhões por meio de repasses no exterior e o restante
em dinheiro vivo no Brasil.
Restou uma dívida de R$ 10 milhões, quitada somente anos
depois. Coube ao ex-tesoureiro petista João Vaccari Neto, hoje preso em
Curitiba, resolver o assunto, mas o método usado para o pagamento deixou
rastros que provocaram a derrocada do casal na Lava Jato. O lobista Zwi
Skornicki, que atuava na Petrobras, pagou o equivalente a R$ 9 milhões em uma
conta no exterior. Para receber, Mônica escreveu um bilhete a Zwi e seu filho
Bruno, no qual ela os orientava a montar um contrato falso para justificar os
repasses, e com as coordenadas da conta onde o dinheiro deveria ser depositado.
O papel seria apreendido pela Polícia Federal em fevereiro de 2015.
No tempo em que o bilhete foi escrito, no entanto, Santana
era o poderoso marqueteiro de todo o PT no Brasil e no exterior. Em 2008,
Santana foi trabalhar para Mauricio Funes, candidato a presidente de El
Salvador. Quando faltou dinheiro, ele procurou Lula e expôs o problema. O então
presidente chamou o ministro Gilberto Carvalho e mandou que encaminhasse João
Santana a Emílio Odebrecht. No contato, Emílio disse: “Deixa que eu falo com o
Italiano”. Era a primeira vez que Santana ouviria o codinome de Palocci na
Odebrecht. O dinheiro apareceu. E Santana sabia, obviamente, que era caixa
dois, obtido com a anuência de Lula.
Sob Dilma, João Santana era o bruxo da imagem petista, mais
importante que muitos ministros, instado a opinar sobre marcas, programas,
ações da gestão e até pronunciamentos de Dilma. São dele os nomes Minha Casa
Minha Vida e Mais Médicos. Doou o slogan “País rico é país sem pobreza”, usado
no segundo governo Dilma. Aconselhava Dilma “de graça”, sem contrato formal com
a Presidência da República. Publicamente e nos corredores do Palácio dizia que
“não queria ter contrato público”, num falso discurso de viés ético. Passou a
ser procurado por ministros em busca de proximidade com Dilma. Entre as
mensagens apreendidas pela Polícia Federal em uma das fases da Lava Jato, o
ex-ministro Mangabeira Unger pedia ajuda a Santana. “Você tem como dar um
empurrão para eu falar com a PR?”, dizia Mangabeira. Em outra mensagem, o
ministro da Secretaria de Comunicação Social, Edinho Silva, repassa dados da
CPMF e uma campanha sobre a Olimpíada. “A Presidenta pediu que eu ouvisse sua
opinião sobre o que seria uma campanha para as Olimpíadas (...) Aguardo sua
opinião.”
Em 2013, João Santana passou a frequentar almoços no Palácio
da Alvorada, nos quais Dilma discutia o governo e como seria sua campanha
seguinte. Era ouvido não só por Dilma, como por Lula e conselheiros como o
ex-ministro Franklin Martins. Em um desses encontros, Dilma garantiu a Santana
que não haveria problemas de pagamento na campanha de 2014 e colocou seu
assessor Giles de Azevedo para intermediar o contato entre Mônica Moura e o
ministro da Fazenda, Guido Mantega. O valor acertado era astronômico: R$ 105
milhões, sendo R$ 70 milhões pelas vias legais e o restante por meio de caixa
dois – que, como das outras vezes, seria com a Odebrecht. Santana chegou a se queixar
diretamente a Dilma de que o cronograma dos pagamentos não estava sendo
obedecido. “A presidente Dilma Rousseff demonstrou irritação e disse que iria
tratar diretamente do assunto com Guido Mantega. Após a conversa, os pagamentos
começaram a ser feitos, mas jamais no ritmo prometido, o que ocasionou a
permanência da dívida e outras cobranças”, relatou João Santana. De acordo com
os delatores, a Odebrecht pagou R$ 10 milhões em espécie, no Brasil, e se
recusou a pagar o restante no exterior, com medo do avanço da Lava Jato, que já
rastreava as contas na Suíça ligadas à empreiteira.
João Santana rememorou um encontro com Dilma no Palácio da
Alvorada, entre outubro e novembro de 2014. Nessa conversa pessoal, Dilma
perguntou se a conta do marqueteiro na Suíça era “segura”. Queria saber,
segundo entendeu Santana, se a Lava Jato poderia descobrir os pagamentos
secretos da Odebrecht na conta Shellbill, do casal. O marqueteiro garantiu que
a conta não seria rastreada – como não fora nos anos anteriores, nas campanhas
na Venezuela, em El Salvador, em Angola e no Panamá, também financiadas pela
Odebrecht na offshore suíça. Dilma disse que estava recebendo “recados
indiretos” de Marcelo Odebrecht. O empreiteiro queria que Dilma interviesse, de
alguma maneira, para barrar a Lava Jato. A presidente disse a Santana que não
tinha condições de fazer isso.
A presidente estava preocupada com os rumos da operação.
Sabia que a conta não estava tão segura assim. Aconselhou o marqueteiro a
permanecer em Nova York, onde estava naqueles tempos, ocupado entre uma
campanha na República Dominicana e férias intermitentes nos Estados Unidos.
“Fica por lá”, disse Dilma, segundo o relato do marqueteiro. Ele interpretou a
frase como um alerta: uma ação contra o casal era inevitável, e somente no
exterior eles estariam protegidos das ações da Lava Jato. Nesse ponto, a
delação traz alguns dos relatos mais comprometedores contra Dilma. Mônica Moura
conta que, em novembro de 2014, recebeu um telefonema durante as férias em Nova
York. Dilma precisava falar pessoalmente e com urgência. Mônica pegou um voo e
foi recebida – sem pompa ou circunstância – em Brasília por Giles Azevedo. No
Palácio da Alvorada, Dilma levou Mônica para conversar no jardim. Combinaram de
conversar por uma conta de e-mail: uma escrevia um rascunho e o salvava. A
outra entrava na conta, acessava o rascunho, lia e apagava. Mas a última
informação recebida Mônica Moura salvou e, posteriormente, registrou em
cartório, confirmando o dia em que o arquivo de texto havia sido criado: 19 de
fevereiro de 2016, dias antes da deflagração da operação para prendê-los. A
mensagem escrita por Dilma, em linguagem cifrada, dizia: “O seu grande amigo
está muito doente. Os médicos consideram que o risco é máximo, 10. O pior é que
a esposa, que sempre tratou dele, agora está com câncer e com o mesmo risco. Os
médicos acompanham os dois, dia e noite”. A prisão de João Santana e Mônica
Moura foi decretada em 22 de fevereiro de 2016. Eles se entregaram e passaram
cinco meses na cadeia.
As provas entregues por João Santana e por Mônica jogam por
terra o discurso de Dilma de que não se metia na Lava Jato e de que não tinha
conhecimento de pagamentos ilícitos. Comprometem diretamente os dois
ex-presidentes petistas em pagamentos cuja origem era a Odebrecht, que se
locupletava com contratos milionários do governo federal e de suas estatais,
notadamente a Petrobras. Os depoimentos de João Santana e Mônica Moura renderam
22 procedimentos no Supremo Tribunal Federal, a pedido do procurador-geral da
República, Rodrigo Janot. Um deles está a cargo do juiz Sergio Moro, para
decidir se haverá investigação sobre o caixa dois na campanha de Dilma (leia a
reportagem na página 46). João Santana e Mônica Moura terão de depositar R$ 3
milhões cada um e devolver os US$ 21,6 milhões depositados na conta na Suíça. A
reclusão prevista no acordo não foi mau negócio: ambos cumprirão pena inicial
de um ano e seis meses em regime fechado domiciliar e mais dois anos e seis
meses entre regimes semiaberto e aberto em um condomínio de luxo à beira da
praia no Litoral Norte da Bahia, no município de Camaçari, onde possuem
residência. Se tudo correr dentro do previsto, no próximo ano já poderão
frequentar o paradisíaco trecho da Praia de Arembepe defronte ao condomínio,
praticamente privativa.
Em nota, a defesa de Dilma afirmou que João Santana e Mônica
Moura prestaram “falso testemunho e faltaram com a verdade”. A assessoria do
Instituto Lula informou que não comentaria os depoimentos de pessoas “que
buscam benefícios judiciais”. O advogado de Lula, Cristiano Zanin Martins,
afirmou em nota que as declarações de João Santana e Mônica Moura “nada
provam”. O então advogado do ex-ministro Antonio Palocci, José Roberto
Batochio, afirmou ser “temerário comentar depoimento cujo teor ainda não se
conhece em detalhes”. Já a senadora Marta Suplicy, hoje no PMDB, disse se
sentir “indignada”. “É uma mentira deslavada”, afirmou em nota, referindo-se ao
trecho em que, segundo Mônica Moura, ela pede um emprego ao então marido Luís
Favre. A Odebrecht informou, por meio de sua assessoria, que está colaborando
com a Justiça nos países onde atua e que “já reconheceu seus erros, pediu
desculpas públicas, assinou um Acordo de Leniência com as autoridades do
Brasil, Estados Unidos, Suíça e República Dominicana, e está comprometida a
combater e não tolerar a corrupção em quaisquer de suas formas”. O PT, que
responde por João Vaccari Neto, disse que não vai se pronunciar. As negativas
vão se suceder. E deverão ser devidamente analisadas. Mas João Santana é um
componente importante do sistema operacional que fez rodar a máquina petista,
conhecendo as intimidades eleitorais de Lula e Dilma. Unido à cúpula petista,
com seus conselhos e produções de imagem, pareceu ter montado o moto-contínuo
do poder. No papel de delator, o mago da fantasia política produziu um golpe de
realidade em Lula, Dilma e no PT.
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