Da ISTOÉ
Domingo Alzugaray deixa lições para as pessoas,
individualmente, e para o País, como um todo – não lições dadas com ares
professorais de quem se julgava dono da verdade, mas ensinamentos, isso sim,
que eram transmitidos a conta gotas no dia a dia, em conversas simples e plenas
de humor. Domingo cumprimentava e falava com todos na editora, da turma da
limpeza ao diretor de redação, e tal atitude já se fazia, por si só, uma
marcante lição com desdobramentos pessoais e sociais, sobretudo para alguns
profissionais de comunicação que “confundem o fato de fazer jornalismo com
trazer o rei na barriga” (a frase é de Domingo). Variações sobre o mesmo tema,
há nesse mesmo diapasão e nesse mesmo tom outra lição que calça feito luva em
determinados políticos e em diversos teóricos da comunicação: “quando uma
pessoa acha que é o centro do poder, alguma coisa começa a falhar”. Ou, então:
“o poder nunca foi o objetivo. O objetivo é ter publicações de informação
influentes”.
Foi nessa linha, a de mostrar àqueles que se acham eternos
que todos nós somos mortais, e que carisma vem no sangue e não se compra em
shopping, que rolou muita risada e muito alto astral em um dos tantos almoços
que ele oferecia na sede da editora a dirigentes da Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp). Falava-se da arrogância do ex-presidente Fernando
Collor logo após o seu impeachment. Domingo disparou: “o Rei Sol teria sido
mais claro e ensolarado se não tivesse chamado a si mesmo de Sol”. Convenhamos,
a humildade é uma lição e tanto. Vale para governar bem uma nação, vale para
provocar com boa intenção os amigos em uma conversa informal, vale para amar e
se fazer amado em um único, feliz e eterno casamento.
Quase tudo que Domingo Alzugaray dizia cotidianamente tinha
um lado pessoal, outro lado político e social – e ambos se combinavam. Exemplo
disso é quando algum funcionário da editora, algum amigo e até algum desafeto o
procurava triste e desanimado — sim, ele alentava até os adversários,
característica de quem tem, como dizia, “o melhor signo do mundo, que é o de
sagitário”. Assim, se alguém o procurava triste ou desanimado, tchau desânimo.
Domingo tinha a rara qualidade de caráter de falar olhando nos olhos do
interlocutor, e dizia ao deprimido: “dá uma chance para eu ver se estou certo.
Pensa no que estou falando, faz o teste para ver se não dá certo”. E
completava: “há momentos em que se fica deprimido. Mas é preciso reagir rápido,
não podemos nos dar ao luxo de ficar desanimados” (eta, sagitariano!). Essa
frase foi dita, claro, a diversas pessoas e especificamente numa entrevista.
Mas mude-se uma palavara aqui, outra ali, foi isso que ele ensinou a um editor
muito jovem e muito atônito que acabara de perder o pai. Valendo-se do jornalista,
cronista, poeta, locutor de futebol e compositor Antonio Maria, pode-se dar a
Domingo Alzugaray a mesma definição que tornou famoso o artista e virou até
nome de show, escrito por Paulo Pontes e estrelado por Clara Nunes e Paulo
Gracindo – “Domingo Alzugaray, profissão: esperança”.
Falou-se acima do caráter de Domingo de conversar olhos nos
olhos (só isso já é uma grande lição, sabiam?), já falou-se de seu caráter em
refletir sobre o Brasil, pensar um Brasil, a ponto de certa vez declarar”: “do
que planejei, devo ter realizado não mais que trinta ou quarenta por cento, e
isso porque o Brasil também não andou trinta ou quarenta por cento”. Pois bem,
eis então duas lições exemplares de caráter (que ultrapassam os limites do
jornalismo) que ele nos legou. Corria setembro de 1994, corria a eleição
presidencial, e igualmente muito corrido estava um repórter de política
recém-desembarcado na redação de ISTOÉ.
Esse repórter recebeu a informação de que o presidenciável
Eneás (digamos que folclórico, com direito a poucos segundos no horário
eleitoral, ocupando esse tempo para dizer rapidamente “meu nome é Enéas”),
acabava de ultrapassar nas pesquisas o ex-governador paulista Orestes Quércia.
Sem dúvida era notícia. Mas como publicar isso em uma revista que, segundo se
dizia na ocasião, teria o próprio Quércia como sócio oculto? Com menos de uma
semana na casa, o repórter é levado à sala de Domingo, fato jamais imaginado em
redações pelas quais já tinha passado (lembrem do começo desse texto, quando se
falou que Domingo detestava a arrogância no jornalismo). Com paciência chinesa,
ele tomou conhecimento da notícia e, diante da angústia do repórter, colocou
naquele instante, sem nada impor, uma espécie de manual seguido ao longo dos
anos.
“Quércia não tem participação nessa editora. Me ajudou
quando precisei, mas é mentira que seja sócio. O que tenho com o governador
Quércia é uma relação de amizade. E amizades precisam ser preservadas. Isso não
significa que iremos privar o leitor de uma informação relevante. O que não
faremos, de maneira alguma, é tratar um amigo com deboche. Publicaremos a
notícia com o respeito que o leitor e os amigos merecem”, ensinou ele. Nas décadas
seguintes, por diversas vezes o repórter voltou à sala de Domingo com
informações que envolviam conhecidos do editor e em todas elas a sua posição se
manteve. O rigor da apuração, a relevância da notícia e o respeito com os
envolvidos sempre prevaleceram. Domingo era leal com os amigos. Domingo
sucumbia diante do jornalismo.
Otimismo e generosidade compunham seu DNA. Essas
características foram decisivas para a construção de um ser absolutamente
sedutor. Mas havia em sua personalidade outro traço: a capacidade de tratar com
contundente ironia os seus desafetos. Há cerca de sete anos, ele foi réu em um
processo cível absurdo movido por um pequeno empresário, dono de um extinto
instituto de pesquisas. O instituto chegou a fazer parceria com ISTOÉ para o
levantamento de enquetes eleitorais, mas passou a agir de forma pouco
republicana e o compromisso foi rompido. O cidadão processou Domingo. Perdeu a
ação. Mas o dono de ISTOÉ, já com a saúde debilitada, precisou comparecer a uma
audiência. Um jornalista, testemunha, estava no fórum quando ele chegou,
acompanhado da advogada e de um enfermeiro. Os quatro aguardavam a chamada do
juiz, quando o tal empresário chegou. Com entusiasmo estendeu a mão para
Domingo, que estava sentado.
“Que prazer revê-lo”, disse ele. Domingo olhou fixo em seus
olhos e respondeu: “Você está bem. Está mais magro. Está mais bonito, mais
atlético…”. “Obrigado”, emendou o empresário já com suor correndo pelo rosto.
“Mas continua sem nenhum caráter”, concluiu Domingo. O tempo andou. Domingo foi
absolvido; o empresário, condenado a indenizá-lo.
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