Da ÉPOCA
Às 9 horas da manhã de 15 de dezembro de 1976, os papéis da
Apelação 41.098 chegaram ao plenário do Superior Tribunal Militar, em Brasília.
Chegavam a uma sala ampla, austera, adornada tão somente com uma bandeira do
Brasil e um crucifixo grande sobre a cadeira do presidente da Corte. Chegavam,
como a vasta maioria das apelações naqueles tempos, agonizando, prestes a virar
um cadáver jurídico. Naquele túmulo frio do regime, os ministros entravam por
uma porta e a lei saía pela outra. Entre o aparato legal da ditadura e as
conveniências dos militares, os 15 ministros não hesitavam. Votavam com os
interesses políticos do regime – com os próprios interesses. Naquela manhã,
produziriam mais uma vítima. Uma vítima que, anos antes, lograra enfurecer os
militares a ponto de alterar o destino do regime.
Moreira Alves foi cassado e expurgado da vida política.
Exilado, ele ainda respondia a um processo na Justiça Militar. O ex-deputado
fora absolvido em primeira instância. A denúncia do Ministério Público Militar
dizia que o ex-deputado “sempre procurou demonstrar claramente suas tendências
de esquerda” e “estabelecer a cizânia entre o Povo e a Revolução”. O conteúdo
subversivo de seus discursos causava tal emoção na nação que, por conta desse
tom, dizem os procuradores, foi desencadeada “a nova fase da Revolução” – o
AI-5. Naquela manhã de dezembro de 1976, o caso atingia a última instância da
Justiça Militar. Das 15 altas e imponentes cadeiras de madeira destinadas aos
magistrados, três estavam vagas.
Terminada sua sustentação oral, Sussekind foi convidado a se
retirar do plenário, no 2º andar do STM – prédio inaugurado em Brasília em
1973. A discussão do caso ocorreria em uma sessão secreta. Era a legislação da
época. Por 40 anos, os debates e os fundamentos que justificaram a condenação
de Moreira Alves a dois anos e três meses de prisão pelo STM ficaram trancados
num arquivo de quatro gavetas, numa sala contígua ao pleno do STM. Não só os
desse caso. Foram mantidos em segredo os áudios de todos os julgamentos
secretos do tribunal. Após uma determinação do Supremo Tribunal Federal em uma
ação movida pelo advogado e pesquisador Fernando Fernandes, as históricas
gravações do STM foram liberadas e obtidas por ÉPOCA. (Ouça ao fim do texto o
áudio do julgamento de Moreira Alves.)
Em 1998, ÉPOCA já revelara a íntegra das gravações da sessão
do Conselho de Segurança Nacional, que, na tarde de 13 de dezembro de 1968,
apagou qualquer vestígio de democracia no Brasil. Os áudios publicados agora
demonstram, pela primeira vez e com a força que somente gravações fornecem,
como os ministros do STM ignoravam conscientemente a lei para proferir
condenações que agradavam ao regime militar. Tomavam cotidianamente decisões de
acordo com suas convicções pessoais. Tratavam com ironia e descaso as denúncias
de maus-tratos a presos. Davam de ombros às alegações de que depoimentos haviam
sido prestados sob tortura. O valioso registro em áudio é um pacote com mais de
10 mil horas de gravação de sessões secretas e não secretas a partir de 1975.
ÉPOCA analisou mais de 150 horas de sessões secretas
realizadas entre 1975 e 1978 no STM. No período, com o general Ernesto Geisel
na Presidência da República, começava-se a discutir uma abertura política. Mas
alas radicais das Forças Armadas seguiam torturando presos políticos e
cometendo crimes endossados pelo Estado. Como o Superior Tribunal Militar era a
última instância recursal da Justiça Militar, era nos ombros e na consciência
daqueles juízes que estava depositada qualquer esperança de reparação, de
equilíbrio – de Justiça, afinal.
O STM não entregou justiça a Moreira Alves. Os ministros
presentes naquela manhã reconheceram que a lei tornava impossível a condenação
de um deputado por discursos feitos durante seu mandato. Mas aquele
ex-parlamentar, traidor da pátria, não podia ficar impune. Um a um, os
magistrados, com desassombro e tranquilidade, foram criando artifícios
retóricos para ignorar a legislação.
De origem civil, o ministro Amarílio Salgado foi o relator
do processo. Ao defender que Moreira Alves fosse condenado, justificou: “É,
infelizmente, adepto da foice e do martelo esse homem”. Seguiu-se uma discussão
na qual os ministros abandonaram as aparências de equidistância legal. General
do Exército, dez medalhas no peito, o ministro Rodrigo Octávio diz que aquele
colegiado devia agir como um “tribunal de segurança”, não um “tribunal de
Justiça”. “Condená-lo em bases jurídicas é completamente inexequível. Agora,
nós vamos tomar, eu vou tomar uma decisão revolucionária. Estamos hoje
preservando o regime revolucionário, a irreversibilidade dos objetivos
revolucionários, não podemos de maneira nenhuma deixar de fazer isso”,
explicou-se.
O voto surpreende porque Rodrigo Octávio passou para a
história como um general relativamente liberal. A atuação de Rodrigo Octávio
incomodava a linha-dura militar. Ele chegou ao STM em 1973. Em março de 1977,
defendeu, no plenário, a revogação parcial do AI-5, o mesmo ato institucional
no qual se baseara para condenar Moreira Alves meses antes. Para o historiador
Carlos Fico, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
estudioso da ditadura militar, essa ambivalência era característica do
tribunal. O STM era acusado pelos opositores do regime de ser um tribunal de
exceção; e, pela linha-dura militar, de ser uma Corte benevolente. A atuação do
STM nesse período é marcada por essa contradição entre se ater à letra da lei,
mesmo à lei da ditadura, ou julgar os processos de acordo com os interesses
políticos e de sobrevivência dos militares.
Um aparato constitucional formulado pela ditadura – a
Constituição de 1967 – ainda garantia algumas liberdades democráticas (como a
necessidade de autorização da Câmara para processar um parlamentar). Esse
aparato foi alterado pelos atos institucionais. “O STM ficou o tempo todo nessa
corda bamba. Em alguns momentos, ele pôde e teve de observar apenas a
Constituição. Em outros, teve de se render ao AI-2 ou o AI-5”, diz Fico. “E
houve casos como o de Moreira Alves. Estivessem ou não os atos institucionais
em vigor, a decisão seria eminentemente política, como de fato foi.”
A ambiguidade de Rodrigo Octávio revelada nos áudios
inéditos é reflexo disso e mostra a importância de conhecer o interior das
instituições que sustentavam a ditadura. “Essa busca por atalhos na
Constituição para resolver os problemas do país é flagrante nas discussões do
STM”, diz Fico. “A divulgação desses áudios é essencial. Por meio deles,
concebemos, com clareza, os debates que resultaram na moldura institucional do regime
militar.”
Àquela altura do julgamento, o STM já havia resolvido
condenar Márcio Moreira Alves. O ministro Jacy Pinheiro, civil, ressaltou os
riscos de uma absolvição para a segurança nacional: “Um homem desta natureza,
que agiu dentro do país e fora do país, nestas circunstâncias, com tamanha
agressividade política, ele poderia retornar perfeitamente à sua terra, o que
seria um verdadeiro escárnio para nós. Dentre os males, eu prefiro o menor”.
Seu colega de toga, o almirante de esquadra da Marinha Octávio José Sampaio
Fernandes utilizou a frase de um antigo integrante da Corte para se justificar:
“O que se procura aqui é fazer a justiça, evidentemente dentro da lei. Mas o
saudoso ministro Alcides Carneiro já teve aqui uma vez uma expressão ‘se se trata
de fazer justiça, mesmo que ela fira a lei, deve-se fazer justiça’. No caso em
apreço, a condenação desse moço, no meu entendimento, é um ato de justiça”.
A noção de justiça do ministro Fernandes e de seus colegas
não constou da ata daquela sessão, único documento público sobre o julgamento.
No papel, o STM optou por um registro que apontava o cumprimento da lei:
“Combatido com a lei e pela lei o crime desses que tramam contra a tradição
democrática, que conspiram contra a unidade moral e espiritual desta grande
nação”. Assinam a ata os 12 ministros que participaram do julgamento.
Condenado, Moreira Alves ficou impossibilitado de voltar ao Brasil, sob risco
de ser preso. Manteve o exílio, passando por Chile, França, Cuba e Portugal. Só
voltou para casa depois da aprovação da Lei da Anistia, em 1979. Tentou se
reeleger deputado federal em 1982 e 1986, mas não conseguiu. Dedicou-se ao
jornalismo, foi colunista de O Globo. Morreu em 2009, sem saber mediante quais
argumentos fora impedido, pelo STM, de regressar ao país.
O STM e a legitimidade do regime
O uso da máquina judiciária para legitimar as prisões na
ditadura ajudou a perpetuar a visão de que no Brasil a repressão não havia sido
tão dura. No livro Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito
no Brasil, Chile e Argentina, o brasilianista americano Anthony Pereira diz
que, nas ditaduras chilena e argentina, os ritos eram sumários e a maioria dos
presos não teve um julgamento formal. Aqui, havia um verniz de falsa
legalidade. Promotores do Ministério Público acusavam pessoas por crimes de
segurança nacional, e estes eram julgados num sistema misto, no qual juízes
civis atuavam em cortes militares.
Esse sistema, e a aparência de devido processo legal
destinada a engrupir o país e o mundo, ajudou na defesa da repressão brasileira
e impediu reformas no Judiciário depois da ditadura. “A roupagem judiciária
ajudou a formalizar as prisões. Os juízes diziam que apenas cumpriam a lei. Os
áudios agora invertem a questão, confirmam aquilo que sempre se tentou
demonstrar”, diz o procurador da República Marlon Weichert, estudioso da
ditadura. Segundo ele, ao contrário do
que ocorreu na Argentina e no Chile, o Judiciário brasileiro nunca fez
uma autocrítica em relação a seu papel na ditadura.
Mais do que isso. Os áudios são uma prova de que o STM
aderiu à violação de direitos humanos durante o regime militar. “Sempre houve
falta de provas de que o Judiciário lavou as mãos durante a ditadura”, diz o
procurador. Marlon foi um dos responsáveis por organizar na internet o acervo
do projeto Brasil: Nunca Mais, que colocou na rede 707 processos julgados no
STM durante o regime. Em muitos deles, fica registrada a prática da tortura
pelos militares. Mas a conivência dos juízes com essa prática e as decisões com
fins políticos, ao arrepio da lei, não ficavam explícitas nos processos.
Tribunal mais antigo do Brasil, criado em 1808, o STM é a
segunda e última instância da Justiça Militar. Hoje, cabe a ele processar e
julgar crimes das Forças Armadas (Aeronáutica, Exército e Marinha), de seus
membros e crimes cometidos por civis contra esses militares ou em áreas
militares. Durante a ditadura militar, suas atribuições se expandiram. O Ato
Institucional no 2 (AI-2), de 1965, autorizou o STM a julgar governadores, secretários
de Estado e civis que atentassem contra a “segurança nacional”. O AI-2 também
alterou a composição do STM, que passou a ser constituído por 15 ministros
vitalícios: quatro oficiais-generais da ativa do Exército, três da Marinha,
três da Aeronáutica e cinco civis. Sob o conceito de “segurança nacional”, o
Decreto-Lei 314, de 1967, estabeleceu como crimes, por exemplo, distribuir
material de propaganda política (pena de um a cinco anos) e divulgar notícia
“tendenciosa” ou “deturpada” para indispor o povo com suas autoridades (seis
meses a um ano). Todos esses e muitos outros ficavam sob a alçada do STM.
Opositores do regime, fossem eles moderados ou fanáticos, lutassem eles com o
verbo ou com a bomba, sofressem eles perseguição política ou sevícias nos
porões, fossem, enfim, inocentes ou culpados do que quer que seja, tinham no
STM uma última e vã instância de súplica por absolvição e liberdade.
Em 1969, o Código de Processo Penal Militar estabeleceu que
os julgamentos no STM ocorreriam em sessões secretas. A partir de 1975, com
acesso a equipamento adequado, o tribunal passou a gravar essas sessões. O
material, armazenado em centenas de fitas de rolo em um arquivo no subsolo do
prédio, foi digitalizado pelo STM em 2015. As sessões secretas só deixaram de
existir com a Constituição de 1988.
Os julgamentos começavam com a sustentação oral dos
advogados de defesa. Depois, todos eram obrigados a se retirar para que os
ministros iniciassem as sessões secretas. Os debates quase sempre chegavam a um
fácil consenso. Ninguém se exaltava; o tom de voz era constante – frio como o
plenário e os homens que nele decidiam o que era justiça num regime de exceção.
As discussões jurídicas não se aprofundavam. Os magistrados reafirmavam a
validade das provas colhidas pela polícia, mesmo quando apresentados a
alegações de que confissões eram obtidas sob as mais cruéis formas de tortura.
Um silêncio conivente se ouvia dos ministros.
Na maioria dos casos, mantinha-se a sentença de primeira
instância. O fato de as sessões ocorrerem secretamente deixava os ministros à
vontade para expor opiniões pessoais e prejulgamentos, muitas vezes
desrespeitosos aos réus. Em um dos debates sobre o ex-governador Leonel
Brizola, alvo de 32 processos na Corte, à época exilado no Uruguai, o ministro
Lima Torres chega a comentar que “não queria dar de graça uma absolvição”. “Eu
acho ele sempre mais culpado do que os outros”, afirmou, em sessão realizada em
setembro de 1976. Com a promulgação da Lei da Anistia, em 1979, o tribunal
militar foi perdendo sua importância, já que os crimes políticos foram
perdoados.
A luta pela transparência
O acervo com as sessões secretas quase foi destruído pelo
Superior Tribunal Militar nos anos 1990. Preservou-se graças à sagacidade e à
perseverança do advogado e pesquisador Fernando Fernandes. Seu pai, o advogado
Tristão Fernandes, defendeu presos políticos durante a ditadura e foi, ele
próprio, preso naquela época. Em 1996, Fernandes, o filho, então um estudante
de Direito de 23 anos inspirado pela trajetória do pai, iniciou uma pesquisa
nos processos físicos da Corte. Papeando com o advogado Lino Machado, que
atuara no STM, ficou sabendo que algumas sessões haviam sido gravadas. Até ali,
pouquíssimas pessoas de fora das arcadas militares sabiam que havia áudios de
sessões do tribunal. Quanto mais registros de reuniões secretas.
Bem-humorado, Fernandes foi se aproximando dos funcionários
do tribunal e descobriu, por descuido de um servidor, a existência de um acervo
escondido numa sala contígua ao plenário. O advogado logo foi alertado de que
não poderia ter acesso aos áudios. Fernandes e Machado formalizaram um pedido
ao STM e, para sua surpresa, o jovem recebeu autorização. Comprou dois
aparelhos antigos de som capazes de reproduzir as antigas fitas de rolo
carretel. Passou dias inteiros trancado numa salinha daquele prédio, sempre
vigiado por um funcionário, escutando as vozes dos ministros que julgavam e
condenavam sem muita cerimônia no tratamento da lei. Apesar da autorização que
recebera, o clima era permanentemente tenso. “Havia uma preocupação deles. Por
mais que não soubessem exatamente o que tinha ali, sabiam que era algo
delicado”, lembra.
Temendo que o acesso aos arquivos fosse revogado a qualquer
momento, Fernandes encarnou um espião da Guerra Fria. Enfiou sorrateiramente
dentro de uma de suas pastas de couro os índices com dados dos processos que
estavam nas gravações. Correu ao prédio em frente ao tribunal e tirou uma cópia
dos documentos. Depois, com seus dois aparelhos de reprodução das fitas,
conseguiu copiar uma das gravações, escolhida aleatoriamente. Escondeu a fita
atrás do vaso sanitário, na parte oca, no banheiro próximo a sua sala de
pesquisa. E seguiu ouvindo os áudios diante de seu vigia como de costume.
“Comecei a entender que as fitas se dividiam em públicas e secretas. O que
estava secreto, ele (o funcionário que o acompanhava) não queria me deixar
examinar de jeito nenhum. Mas botei a secreta no gravador. Quando ouvi as
discussões dos ministros, e ali tinha uma questão sobre a morte do (Carlos)
Mariguella (guerrilheiro da Aliança Libertadora Nacional), o cara desligou o
gravador: ‘Você hoje está suspenso’”, diz Fernandes. Seu receio de uma nova censura
ia se concretizando.
No dia seguinte, na sala onde fazia a pesquisa, os ministros
do STM se reuniram para escutar a tal fita. Montou-se até um pequeno auditório,
com o gravador no meio. Fernandes flagrou a cena. Apressou-se em buscar sua
cópia no banheiro e saiu rapidamente do prédio. E da cidade. Voou imediatamente
para o Rio de Janeiro. Era quase como se ainda vivesse numa ditadura. Fernandes
saiu tão açodado que deixou para trás uma de suas pastas de couro, protegida
por cadeado e senha, com o índice dos áudios secretos dentro. Quando ele chegou
ao Rio de Janeiro, já havia um aviso dos militares de que sua pesquisa estava
suspensa e uma ordem para que ele abrisse a pasta esquecida no tribunal. Diante
da negativa do pesquisador, os militares arrombaram a pasta – mas tiveram de
registrar o ato num “auto de arrombamento”.
Fernandes protocolou com seu pai, Tristão, um mandado de
segurança no STM, solicitando a pasta de volta e o acesso aos áudios públicos e
secretos. “Como meu pai disse, a democracia é um problema sério. A partir
daquilo, eles tiveram de tombar, numerar e judicializar a questão da abertura.
O arquivo não era mais secreto”, conta. O STM negou o pedido, sob a
justificativa de resguardar a intimidade dos processados. Foi no julgamento
desse pedido, em 1997, que Fernandes fez sua primeira sustentação oral como
advogado. Ao lado de seu pai.
O assunto chegou ao Supremo Tribunal Federal porque os
arquivos corriam um real risco de extinção. “Eles me intimaram avisando que iam
apagar o arquivo. Já imaginou? Apagar, sumir”, diz Fernandes. O advogado obteve
do Supremo uma liminar impedindo a trágica iniciativa. Quase dez anos depois,
em 2006, a Segunda Turma do Supremo determinou que o STM abrisse o acesso aos
arquivos. O Superior Tribunal Militar insubordinou-se e desobedeceu à ordem. Em
2011, Fernandes moveu uma nova ação argumentando que o STM permitira apenas
acesso aos áudios das sessões públicas. Finalmente em 16 de março deste ano, em
uma sessão histórica, o plenário do Supremo entendeu, por unanimidade, que o
tribunal militar descumpriu a ordem anterior e determinou expressamente o
acesso irrestrito aos áudios secretos. Em seu voto, a ministra Cármen Lúcia,
relatora do caso e presidente do Supremo, diz que “tem-se como injustificável
juridicamente a resistência que o STM tentou opor ao cumprimento da decisão
emanada deste Supremo Tribunal, que taxativamente afastou os obstáculos
erigidos para impedir que fossem trazidos a lume a integralidade dos atos
processuais ali praticados, seja na dimensão oral ou escrita, cujo conhecimento
cidadãos brasileiros requereram para fins de pesquisa histórica e resguardo da
memória nacional”. O decano Celso de Mello respaldou a ministra. “Não se pode
impor óbice à busca da verdade e à preservação da memória histórica em torno
dos fatos ocorridos no período em que o país, o nosso país, foi dominado pelo
regime militar.” Terminava uma batalha judicial de 21 anos. Questionado sobre o
descumprimento da primeira decisão do Supremo, o STM afirmou que houve uma
“falha administrativa” em não informar o advogado Fernando Fernandes de que o
material já estava digitalizado e disponível para consulta desde 2015.
O desdém dos ministros
As gravações lançam luz, pela primeira vez, sobre a visão
não somente jurídica, mas também política dos ministros de apoio ao regime.
Havia discussões frequentes nos processos envolvendo torturas e desrespeitos
aos direitos humanos. Com dados dos próprios processos do STM, o projeto
Brasil: Nunca Mais calculou que ao menos 1.843 pessoas foram submetidas a
torturas no período e avisaram à Justiça Militar sobre o fato, que pouco ou
nada fez. Os ministros eram alertados de que os depoimentos prestados à polícia
pelos réus ocorriam mediante submissão aos maus-tratos. Em juízo,
os mesmos réus negavam o que haviam dito à polícia e
contavam que foram coagidos a dar aquelas versões. Os ministros optavam, na
maioria das vezes, por ignorar essas graves acusações.
Foi o que aconteceu, por exemplo, na 49ª sessão secreta de
1976, de 18 de junho daquele ano. O julgamento era de dois militantes da
organização guerrilheira Molipo (Movimento de Libertação Popular), Pedro Rocha
Filho e José Carlos Giannini, acusados de incendiar um ônibus. Em sustentação
oral, o advogado José Roberto Leal alertou aos ministros que os réus estavam
sendo torturados no DOI-Codi, órgão subordinado ao Exército, e que eles eram
coagidos durante os depoimentos ao Dops, outro órgão da repressão. “O Dops não
bate. Só diz o seguinte: ‘Ou você confessa hoje ou você volta para o DOI’.
Acaso teriam eles coragem de dizer que não tinham feito isso?”, questionou o
advogado. Formado em Direito e ministro do STM desde 1969 na cota dos civis, o
relator desse caso, ministro Waldemar Torres da Costa, avaliou que as alegadas
torturas não eram um problema para esse julgamento. “Não encontrei motivos para
invalidar o que (os réus) relataram perante a autoridade policial. Essas
declarações se apresentam aceitáveis e nada indica que não correspondam à
verdade”, justificou em seu voto, para condená-los a 12 anos de prisão – o
resultado desse julgamento foi pela absolvição dos réus, por seis votos a
cinco.
Nas sessões secretas ouvidas por
ÉPOCA, houve só um caso em que a Corte admitiu a
possibilidade de tortura e determinou uma investigação para apurar o assunto.
Foi na 76a sessão secreta de 1977, realizada em 19 de outubro. Era um processo
contra Paulo José de Oliveira Moraes, acusado de assaltos a banco. O ministro
relator Gualter Godinho admitiu: “Não é fácil apreciarmos o problema da
sevícia”. Acrescentou que, naquele caso, o abuso “ficou evidentemente
demonstrado”. “Não importa saber e
tratar-se de um elemento já tarimbado no campo da subversão e que já tenha
recebido outras condenações. Trata-se apenas de examinar o aspecto homem, que
infelizmente nesse caso ficou demonstrado que a polícia agiu realmente de forma
brutal e contra todos os princípios de respeito ao direito humano”, discursou o
relator. Moraes foi absolvido. Em uma entrevista ao Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da FGV (Fundação Getulio
Vargas), o ex-ministro do STM Júlio de Sá Bierrenbach, que entrara havia poucos
meses na Corte, diz que foi o melhor serviço que eles prestaram à sociedade.
Pela primeira vez, eram estampados nas manchetes dos jornais títulos como “STM
comprova e condena tortura”.
Os áudios secretos comprovam como essa foi uma exceção. As
gravações revelam o descaso com o qual os ministros normalmente tratavam as
denúncias que recebiam de desrespeitos aos direitos humanos. Na 91a sessão
secreta de 1977, o então presidente da Corte, Hélio Ramos de Azevedo Leite,
suscita uma discussão com seus pares sobre o tema da greve de fome de presos em
Pernambuco – parlamentares iriam visitá-lo para tratar do assunto. A opinião
dos ministros era que o STM não devia se meter em assuntos penitenciários. Um
deles, que não se identifica ao falar, diz em voz baixa: “Devia ser estimulada
a greve de fome, assim liberava mais vaga nos presídios”. A chacota segue.
Almirante de esquadra da Marinha, o ministro Hélio Ramos chegou a fazer
críticas públicas contra o excesso de prazo das prisões do regime militar e
defender o abrandamento do regime. Mas, naquele 1o de dezembro de 1977, por
volta das 14 horas, diante de seus pares e sem nenhuma plateia, Hélio Ramos não
se constrangeu de fazer pouco caso das denúncias de tortura. “Eu por dia recebo
cerca de dez ou 15 ofícios, cartas, e Anistia Internacional, e não sei o que da
Dinamarca... Eu diariamente recebo um monte. Agora eu nem leio mais, eu mando
botar num envelope.” Outro ministro replica: “É bom guardar os selos para
coleção”. Todos riem, provavelmente sem se atentar que estavam entrando para a
coleção de barbaridades do regime ditatorial que ajudaram a manter.
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