Peço licença a Patrícia Kogut para invadir o território que
é dela por merecimento, e confessar que não perco um capítulo de “A força do
querer”. Palavra de quem é do tempo em que intelectual não via novela, a não
ser quando passava pela cozinha com o aparelho ligado (essa era a desculpa).
Hoje, além de ser o produto cultural mais consumido no país,
o mais exportado e um dos mais premiados no exterior (acaba de receber duas
indicações para o Grammy), a telenovela tem sido objeto de livros e teses
universitárias, e até tema de um ciclo de debates na Academia Brasileira de Letras.
A consagração do gênero se deve muito a Gloria Perez, essa
figura demiúrgica capaz de conquistar o público com a combinação de fantasia e
realidade, como está fazendo no seu folhetim de agora, em que mistura numa
mesma história o arcaico e o pós-moderno, sereísmo, transgênero, compulsão por
jogo, adultério, aborto, chantagem, luta feminina de MMA, dependência
adolescente do celular, tráfico de drogas, invasão de favela.
Desta vez, ela radicalizou, trazendo para o centro da trama
a lenda amazônica do boto cor-de-rosa, que nas festas juninas costuma se
disfarçar em irresistível sedutor que leva jovens bonitas para o fundo dos rios
e as engravida — exatamente como fez com a mãe de Ritinha (Isis Valverde), a
linda sereia que lança mão, quando precisa, de sua cauda postiça.
Filha do Acre, terra da “miração” — o barato visual causado
pelo chá do Santo Daime — conterrânea do visionário Chico Mendes, Gloria
conviveu a vida toda com esse rico imaginário coletivo em que o inverossímil é
aceito com naturalidade.
Talvez por isso ela seja entre nós a mais autêntica
representante do realismo fantástico, com a vantagem de que trata o real com
igual competência, inclusive antecipando tendências temáticas. Um dos pontos
altos e mais delicados da história, por exemplo, é o drama da trans Ivana e sua
transição para Ivan, em meio ao conflito com a inconformada mãe.
Não sei se ainda é cedo para prever, mas com Carol Duarte
parece estar nascendo uma estrela de primeira grandeza.
No item realismo, outro destaque são as cenas na favela,
gravadas com fidelidade de documentário. Em alguns capítulos, era como se fosse
a continuação da cobertura da invasão da Rocinha do “Jornal Nacional”.
Até saber que Sabiá era Jonathan de Azevedo, que já brilhara
em outros trabalhos, achei que se tratava de um traficante no papel dele mesmo.
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