sábado, 30 de setembro de 2017

A GLÓRIA DAS NOVELAS

Zuenir Ventura, O Globo
Peço licença a Patrícia Kogut para invadir o território que é dela por merecimento, e confessar que não perco um capítulo de “A força do querer”. Palavra de quem é do tempo em que intelectual não via novela, a não ser quando passava pela cozinha com o aparelho ligado (essa era a desculpa).
Hoje, além de ser o produto cultural mais consumido no país, o mais exportado e um dos mais premiados no exterior (acaba de receber duas indicações para o Grammy), a telenovela tem sido objeto de livros e teses universitárias, e até tema de um ciclo de debates na Academia Brasileira de Letras.
A consagração do gênero se deve muito a Gloria Perez, essa figura demiúrgica capaz de conquistar o público com a combinação de fantasia e realidade, como está fazendo no seu folhetim de agora, em que mistura numa mesma história o arcaico e o pós-moderno, sereísmo, transgênero, compulsão por jogo, adultério, aborto, chantagem, luta feminina de MMA, dependência adolescente do celular, tráfico de drogas, invasão de favela.
Desta vez, ela radicalizou, trazendo para o centro da trama a lenda amazônica do boto cor-de-rosa, que nas festas juninas costuma se disfarçar em irresistível sedutor que leva jovens bonitas para o fundo dos rios e as engravida — exatamente como fez com a mãe de Ritinha (Isis Valverde), a linda sereia que lança mão, quando precisa, de sua cauda postiça.
Filha do Acre, terra da “miração” — o barato visual causado pelo chá do Santo Daime — conterrânea do visionário Chico Mendes, Gloria conviveu a vida toda com esse rico imaginário coletivo em que o inverossímil é aceito com naturalidade.
Talvez por isso ela seja entre nós a mais autêntica representante do realismo fantástico, com a vantagem de que trata o real com igual competência, inclusive antecipando tendências temáticas. Um dos pontos altos e mais delicados da história, por exemplo, é o drama da trans Ivana e sua transição para Ivan, em meio ao conflito com a inconformada mãe.
Não sei se ainda é cedo para prever, mas com Carol Duarte parece estar nascendo uma estrela de primeira grandeza.
No item realismo, outro destaque são as cenas na favela, gravadas com fidelidade de documentário. Em alguns capítulos, era como se fosse a continuação da cobertura da invasão da Rocinha do “Jornal Nacional”.
Até saber que Sabiá era Jonathan de Azevedo, que já brilhara em outros trabalhos, achei que se tratava de um traficante no papel dele mesmo.
Em matéria de elenco, porém, é até injusto ressaltar nomes. Essa homogênea e excelente seleção de craques é em grande parte responsável por fazer de “A força do querer” um marco na obra de Gloria Perez.
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