Artigo de Fernando Gabeira
Como será o trabalho de Raquel Dodge? Eis uma pergunta que
ainda não se pode responder. Quase todos se revelam – e às vezes se transformam
– no curso dos acontecimentos.
A imprensa registrou a omissão da Lava Jato no discurso de
posse de Dodge. De fato, ignorou algo de repercussão internacional. Mas talvez,
diante de três componentes da mesa investigados pela Lava Jato, Dodge tenha
preferido, como se dizia na infância, não falar de corda em casa de enforcado.
No momento atual, deve fazer correções nos acordos de
delação premiada dos donos da JBS. E a decisão de Janot em denunciar Temer de
novo deve ocupar o centro da cena. As previsões são quase unânimes de que Temer
escapará na Câmara.
O Brasil continuará sendo dirigido por um homem acusado de
dirigir uma organização criminosa, com o respaldo da Câmara. E não vejo grandes
reações a isso no horizonte. A leitura da denúncia de Janot me dá uma pista
para entender a passividade popular diante de mais uma denúncia rejeitada.
A denúncia afirma que o Brasil era dirigido por uma
organização criminosa, no governo PT, e que a passagem do poder,
pós-impeachment, mudou o comando do processo de corrupção. Em suma, houve uma
troca de quadrilhas no topo do poder.
Imagino que as pessoas se perguntem: se o impeachment
provocou apenas uma troca de quadrilhas, por que a queda de Temer não traria
outra quadrilha ao governo? A sociedade tornou-se refém de um sistema político
partidário fracassado.
Temer, segundo as pesquisas, está com 3,4% de aprovação.
Alguns membros da quadrilha, Cunha, Henrique Alves e Geddel, além do operador
Lúcio Funaro, estão presos. Os restantes, Padilha e Moreira Franco, foram
denunciados. Sua expectativa é a estabilidade econômica e algum crescimento.
Ele acha que com isso responde aos problemas específicos colocados pelo seu
desgaste. Curioso como se aproxima do PT na supervalorização do crescimento
material, uma espécie de cura para todos os crimes denunciados.
É um modo de pensar que exclui os valores democráticos e
reduz as pessoas ao universo do consumo. A suposição é de que elas aceitam
tudo, desde que estejam ganhando um pouco mais.
A denúncia será julgada naquele clima que conhecemos e
avaliada de acordo com as orientações políticas de cada um. No entanto, o
volume de informações existentes, a prisão de vários componentes do grupo, o
realismo fantástico daquelas malas cheias de dinheiro de Geddel… Tudo isso não
sai da memória tão cedo. Como não saiu o deputado Rocha Loures correndo com a mala
da pizzaria. A cena foi repetida tantas vezes que, no final, eu mesmo dizia: lá
vai o Rocha Loures com sua mala a caminho do táxi.
Mesmo sendo leigo em Direito Penal, a gente ouve falar em
quadrilha, vê tanta mala cheia de dinheiro, pensa em quadrilha. E até hoje não
há explicação para elas, uma fortuna familiar, um novo modo de entregar pizzas.
As malas são concretas, as contas no exterior, apenas dados bancários.
Muita gente pensa que a rejeição da denúncia passará em
branco talvez porque espere demonstrações de rua. Hoje o descontentamento é
crônico e às vezes aparece pontualmente, em palcos, gritos de “fora Temer”.
Daqui a pouco, os 3% vão-se embora, ficam 0,4%.
Até as forças de oposição parecem contentar-se com Temer
sangrando. E alguns analistas chegam a prever uma vitória da corrupção, com
mudanças na Lava Jato. Nem todos os dados estão lançados. A descoberta dos R$
51 milhões com a impressão dos dedos de Geddel, isso ainda vai ser explicado.
Não é possível que se apreenda tanto dinheiro, um recorde histórico, e não se
explique sua origem.
De todas as maneiras, creio, o Brasil vai tentar se livrar
desse gigantesco esquema de corrupção que domina o País e foi revelado, na
maioria de seus lances, com muita competência pelas investigações.
O The Guardian reproduziu esta semana uma matéria portuguesa
falando dos empreiteiros envolvidos na Lava Jato que compraram imóveis para
garantir um visto de residência definitiva por lá. Está dentro da lei
portuguesa que estimula o investimento imobiliário no país.
Mas as manchetes revelam o interesse internacional pela Lava
Jato, mesmo fora da América Latina, onde, com dinheiro do BNDES, a Odebrecht
fez um estrago. Recentemente, os bancos suíços admitiram, no pós-Lava Jato, uma
mudança de regras no sentido de tornar mais difícil o fluxo de dinheiro da
corrupção. Um ganho planetário, uma vez que os brasileiros não descobriram o
caminho nem foram os únicos a usar bancos suíços.
Além do apoio popular, são muitas as razões para achar a
Lava Jato irreversível. Colocaram o bode na sala e simplesmente será impossível
ignorá-lo.
Não sei como o País reagiria se fosse golpeado em sua
expectativa de julgamento dessas quadrilhas. Muitos políticos continuam
contando com a paciência popular. Não percebem que, ultrapassados certos limites,
eles próprios podem pôr-se num risco maior que a prisão.
Supor que ainda possam prevalecer diante da Lava Jato e a
pressão popular imaginar o País derrotado por um sistema político-partidário
arruinado moralmente é lembrar o pior dos mundos. O triunfo do agonizante sobre
uma sociedade cada vez mais informada.
Estou consciente de que minha calma se baseia numa análise
mais ampla. Peripécias podem acontecer. Como a delação da JBS, que se mostrou
um erro, apesar das provas colhidas.
-15Todos foram informados de que o Brasil foi dirigido por
quadrilhas. É importante encontrar um desfecho legal e pacífico para essa
descoberta. A teimosia dos políticos em combater a Lava Jato pode levar não só
a reações violentas, como também estimular discursos de intervenção militar,
muito presentes nas redes sociais.
Apesar da confiança no rumo geral, há esta inquietação
tática: quanto tempo os políticos vão levar para compreender que o jogo acabou?
Artigo publicado no Estadão em 22/09/2017
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