Artigo de Fernando Gabeira
O debate entre mulheres americanas e francesas sobre assédio
sexual já deu muito o que falar. Vou me dedicar apenas a uma pontinha dele. É
argumento das francesas que estamos ameaçados por um novo puritanismo. Por
acaso, estava lendo sobre o tema, a volta do puritanismo, mas vista de um
ângulo completamente diferente. Nele, o motor do novo puritanismo não estava
precisamente num grupo de atrizes vestidas de preto, mas na própria industria
da diversão onde são protagonistas. Esta é uma interessante visão do filósofo
inglês John Gray. Ele acha que as guerras envolvendo gente só acontecem nos
estados falidos. Em países ricos de alta tecnologia, as guerras são feitas por
computadores.
Com essa mudança na guerra, a pressão para manter a coesão
social é relaxada, e os pobres podem ser deixados à parte, desde que não
representem ameaça. Nesse contexto, há também a mutação na economia. O domínio
da agricultura está no fim; o da indústria, nos estertores. Entra em cena a
distração. Segundo Gray, o imperativo do capitalismo contemporâneo, nas áreas
mais ricas, é manter o tédio à distância. Onde a riqueza é a regra, a maior
ameaça é a perda do desejo. Gray vê a economia movida pela manufatura das
transgressões e conclui:
— Hoje, as doses de loucura que nos mantêm sadios são
fornecidas pelas novas tecnologias. Qualquer um ligado à internet tem uma oferta
ilimitada de sexo e violência virtuais. Mas o que acontecerá quando não
conseguirmos novos vícios? Como superar o ócio e a saciedade quando sexo,
drogas e violência feitas por designers não venderam mais? Nesse ponto, podemos
ter certeza, a moralidade voltará à moda. Talvez não estejamos longe de um
tempo em que “moralidade” seja vendida como um novo tipo de transgressão.
Essa conclusão coincide com minha ideia de que o puritanismo
só voltará como uma nova moda. As coisas avançaram muito para se pensar em
volta ao puritanismo dos tempos da Rainha Vitória. O debate entre francesas e
americanas ficaria mais completo se houvesse uma visão da indústria um pouco
mais ampla do que a relação homem e mulher no trabalho.
Depois da saída dos manifestos, surgiu uma série de
denúncias contra os fotógrafos Mario Testino e Bruce Weber. Nesse caso, as
vítimas não são mulheres, mas jovens modelos de moda masculina. Eles precisam
parecer atraentes sexualmente. É essencial para a foto funcionar. Há uma
energia sensual fluindo do modelo para o artista também como um estímulo à
eficácia da imagem produzida. Mario Testino e Bruce Weber podem ter cruzado a
linha do respeito mútuo nesse delicado trabalho conjunto. Mas estavam tentando revestir
um produto de um apelo sexual — business as usual. Definir os limites nesse
caso é um acordo que deve prevalecer numa equipe de trabalho.
Mas o trabalho em si não tem nada de puritano: é movido pelo
objetivo de tornar sexualmente atraente a roupa a ser vendida. E apelar para um
instinto quase tão forte quanto o da sobrevivência: o acasalamento. De um modo
geral, concordo com as francesas no sentido de que há que se pegar mais leve.
Um homem de 95 anos foi denunciado porque tirou a roupa e pediu um sexo oral,
talvez à enfermeira. É uma dessas situações patéticas que nos levam mais a
refletir sobre a velhice do que propriamente sobre assédio.
Em termos literários, Gabriel García Márquez o fez em
“Memoria de mis putas tristes”. Um jornalista, aos 90 anos, decide se dar como
aniversário uma noite de amor com garota de 14 anos. Ao vê-la adormecida se
apaixona por ela, não a molesta, mas apenas vela o seu sono. Mas entrar nessa
história vai me levar muito longe da questão da moralidade e da transgressão.
Esse tema me interessou basicamente na tentativa de entender
algo bastante singular. É uma questão política, brasileira: a atração dos
jovens pela candidatura Bolsonaro. Num país dominado durante anos pela
esquerda, com seu universo político desmoralizado, a moralidade pode ser vivida
também como uma transgressão. Não tenho explicação conclusiva, mas achei apenas
que, nesse universo singular, que não é o mesmo descrito por John Gray, pode
ser de uma certa valia. Caso tenha alguma base na realidade, talvez nos ajude a
entender o que se passa com parte da juventude e sua atração pela direita.
Desqualificá-la aumenta a crença de que são incompreendidos e atacados pelo
sistema.
Se esse roteiro estiver correto, o primeiro passo para
discutir com ela é ter uma posição clara sobre a Lava-Jato. Enquanto o mundo
político se comportar como cúmplice de quadrilhas, a juventude vai passar ao
longe. Ao lado da desgastada utopia da esquerda surgirá também a nostalgia dos
velhos tempos. Eles não voltam mais, assim como nunca chegarão aos amanhãs que
cantam do discurso socialista. O desafio é achar uma saída que contemple a luta
contra a corrupção e encare de frente um mundo complicado demais para
nostalgias de esquerda ou direita.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo em 21/01/2018
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