Da ISTOÉ
Nunca fomos tão fortes. No último ano, mulheres denunciaram
publicamente homens poderosos em casos de assédios. Organizaram manifestações
em diferentes países contra o feminicídio e pela manutenção e ampliação de
direitos. Criaram redes de apoio para ajudar vítimas de violência doméstica, de
agressões e de estupros. Desenvolveram grupos de debate e de apoio mútuo nas
redes sociais. Discutiram e condenaram o machismo, o racismo e a homofobia e
trouxeram força para a nova onda de um movimento que tem mudado mentalidades,
comportamentos e relações. Diante de tamanha mobilização, “feminismo” foi
escolhida a palavra de 2017 pelo dicionário americano Merriam-Webster e a busca
pelo termo no Google cresceu 200% desde 2016. “Estamos em um momento em que o
feminismo se tornou a grande força de enfrentamento não só do machismo, mas que
leva adiante a luta anti-racista e pelos direitos das mais diversas minorias
políticas”, afirma a filósofa Marcia Tiburi, autora do recém-lançado “Feminismo
em Comum” (Rosa dos Tempos).
Entre os marcos do feminismo atual estão as redes de
solidariedade desenvolvidas por mulheres. A maioria de apoio para vítimas de
violência. “São alternativas criadas já que as instituições tradicionais não
são responsáveis o suficiente”, afirma Tiburi. As conexões se dão, em grande
parte, pelas redes sociais. O Fórum Nacional de Políticas Públicas para
Mulheres é um dos grupos de referência, começou como uma página no Facebook e
depois migrou para o Whatsapp e hoje inclui pessoas de todo o País. “A ideia inicial
era trocar informações sobre cursos e artigos e reunir contatos”, afirma Ana
Victoriano, dona da iniciativa. “Mas hoje se tornou uma comunidade de ajuda a
vítimas de agressões. Não imaginei que tomaria essa proporção.” Os pedidos de
ajuda chegam diariamente e, por meio da rede, os contatos são feitos para que
as mulheres possam receber orientação adequada. Depois de passar meses
apanhando do marido, a advogada Maíra Moura Soares Neves, 41 anos, procurou Ana
em outubro de 2017 e conseguiu deixar o casamento em que era agredida
constantemente e do qual se via refém. “Em qualquer conversa, ouvia gritos de
vagabunda ou recebia tapas”, diz. Moradora da cidade de Barra do Bugres, a
180km de Cuiabá (MT), era casada com um delegado e não tinha como denunciá-lo em
uma delegacia. “Com certeza iam engavetar meu caso.” Maíra então usou o
Facebook para pedir ajuda a Ana, que acionou conhecidas em São Paulo. Elas
falaram com juristas no Mato Grosso que indicaram uma promotora em uma cidade
próxima a dela. “Criaram uma corrente de ajuda”, diz. Em pouco tempo, uma
denúncia foi feita contra o ex-marido de Maíra e ela se separou. A mesma
promotora foi quem a ajudou a retirar seus pertences da antiga casa. Ao contar
sua história, Maíra chora, respira fundo e conclui: “Eu estava de mãos atadas,
mas essa rede de mulheres me salvou.”
Duas campanhas recentes que surgiram nos Estados Unidos dão
o tom da amplificação das transformações: “Me Too” (“eu também”, em português),
em que mulheres expuseram abusadores contando suas histórias; e Time’s Up (algo
como “esse tempo acabou”, em tradução livre), que inclui a criação de um fundo
para ajudar vítimas de assédio sexual na indústria do entretenimento em
Hollywood. Além dessas iniciativas, o fim das “grid girls”, garotas que
frequentavam os locais de provas da Fórmula 1 com roupas minúsculas, também é
um indício da mudança de postura em relação às mulheres. Outro exemplo é o
latino-americano Ni Una Menos, que organiza passeatas anuais contra o
feminicídio. O movimento chegou também ao Oriente Médio. No Irã, em janeiro e
fevereiro deste ano, mulheres protestaram contra a obrigatoriedade do uso do
véu, em vigor desde 1979. Cerca de 30 foram presas em uma manifestação recente.
Na Arábia Saudita, o governo mudou uma lei que exigia o consentimento de um
homem para que uma mulher abrisse uma empresa. O feminismo tem se espalhando
por vários lugares do mundo e há causas similares. Mas é preciso pensar nas
diversas realidades enfrentadas pelas mulheres, inclusive no Brasil.
Feminismos
O feminismo brasileiro tem características específicas como
a necessidade de pensar as diferentes perspectivas envolvendo gênero e,
principalmente, raça, classe e sexualidade. É um dos debates mais atuais dentro
do movimento. “Ser branca em São Paulo é diferente de ser negra e nordestina”,
diz Mafoane Odara, coordenadora de projetos do Instituto Avon. Diretora
executiva da Anistia Internacional e fundadora da ONG Criola, Jurema Werneck
aponta que o feminismo clássico trata da mulher branca de classe média, mas há
outras questões que precisam ser mais debatidas. “O movimento ainda precisa ver
como lidar com a maioria das mulheres, e isso inclui negras, trans, entre
outros grupos”, afirma. Ela complementa: “Não digo que as pautas não ressoem,
nem estou negligenciando reivindicações, mas é preciso retornar aos princípios
do próprio feminismo de igualdade e justiça e ter olhar mais amplo.” Integrante
da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, Juliana Gonçalves afirma que hoje o
correto é falar sobre feminismos, no plural, e sobre como os grupos estão se
articulando. “As sufragistas e a queima dos sutiãs são sempre lembradas, mas a
resistência começou bem antes”, diz. “Enquanto as mulheres brancas estavam
batalhando para entrar no mercado de trabalho, minhas ancestrais já trabalhavam
há muito tempo.” Gonçalves ressalta que respeitar diferenças não pode ser
motriz de desigualdade ou separação. Pelo contrário, é o que dá mais força.
“Mas é preciso escuta. Quem tem uma bagagem diferente não pode ser tratada como
uma desigual, pois a intolerância se traduz em números que matam e ferem.”
No caso de mulheres negras, que representam um quarto da
população brasileira, a sobreposição entre desigualdade de gênero e de raça
resulta em números alarmantes. O Mapa da Violência 2015 mostra que a taxa de
homicídios entre negras aumentou 54,2% entre 2003 e 2013. No mesmo período, a
taxa entre brancas caiu em 9,8% (confira no quadro ao lado). Além disso, é o
perfil social com os maiores índices de desemprego: 17,4% contra 11,6% da média
feminina com ensino médio. Resistência do mercado de trabalho e violência
constante são realidades também para transexuais e travestis, em um País com as
mais altas taxas de assassinatos desse grupo no mundo. Em 2016, aconteceu uma
morte a cada dois dias. Diante desses dados e com a popularização do feminismo,
discute-se atualmente a necessidade de olhar para as diferentes questões e se
unir para combatê-los. “Essas outras vertentes surgem como forma de forçar o
feminismo mais hegemônico a repensar suas práticas e perspectivas, se não a
luta só serve para garantir igualdade a um segmento muito específico de
mulheres”, afirma a escritora e militante feminista trans Amara Moira.
Foi ao perceber a dificuldade de mulheres negras no mercado
de trabalho que a empresária e coach Ana Bernardes teve a ideia de se dedicar a
ajudá-las. Criou o grupo Afro Empoderadas e Empreendedoras, hoje com mais de 2
mil pessoas, e presta consultoria empresarial voluntária, em eventos e
acompanhamento individual — como faz com a dentista Kátia Cristina da Silva
Neves, que gere seu próprio consultório. “Percebi que somos nós por nós”, diz
Bernardes. Para a promotora de Justiça Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, especialista
em disparidades de gênero, a luta pela igualdade de oportunidades é justificada
pelo efeito positivo também no desenvolvimento econômico. “Contemplar a parcela
feminina da população, mais de 50%, fará com que o País seja mais
desenvolvido”, afirma. “Por isso, podemos dizer que ser feminista e exigir mais
espaços e oportunidades para as mulheres não tem a ver com ideologia ou
tendência política para a esquerda ou direita, é uma questão, inclusive,
econômica”, diz. Paes ressalta que, no último relatório do Fórum Econômico
Mundial sobre disparidades de gênero, o Brasil caiu da posição 79 para a 90.
“Essa queda tem relação com a falta de mulheres em cargos de poder”. E isso
inclui o ambiente político. “Com mais mulheres no Congresso, haveria mais
medidas protetivas”, afirma. Na Câmara dos Deputados, elas ocupam 10,7% das
cadeiras e, no Senado, 14,8%.
O feminismo tem fomentado também mudanças no cotidiano dos
brasileiros. A exemplo da discussão sobre a diferença entre assédio e paquera,
que ficou mais intensa no início de 2018, quando a apresentadora americana
Oprah Winfrey fez um discurso no Globo de Ouro falando sobre as situações
vividas por mulheres na indústria do audiovisual em Hollywood. Na sequência,
100 francesas assinaram uma carta falando sobre o direito do homem de
importunar uma mulher. Quais os limites da interação durante um flerte? O que é
considerado ofensivo? Perguntas que muitas pessoas se fizeram podem ter sido
respondidas durante o Carnaval deste ano, época em que os casos de violência
sexual chegam a aumentar em 90%. Durante a folia, em diferentes cidades, foram
distribuídos adesivos e cartazes com a frase “não é não”. Vídeos se propagaram
pelas redes sociais com dizeres como “depois do não, tudo é assédio” e “meu
corpo não é folia”, marcas de cerveja investiram em publicidade se posicionando
contra abusos, cantores em blocos e trios elétricos lembraram a todo momento
que violência contra a mulher é crime. E mais uma vez mulheres se organizaram
com a campanha “Aconteceu no Carnaval”, site que recebe relatos dos abusos
sofridos.
“Exigir mais espaços e oportunidades para as mulheres não
tem a ver com ideologia” Fabiana Dal’Mas Rocha Paes, promotora de Justiça
No ambiente de trabalho, assédios também não são mais vistos
com naturalidade. Nas empresas e instituições, mulheres têm se organizado para
discutir situações e apontar nomes, inclusive expondo situações nas redes
sociais. Um caso emblemático no Brasil envolve o ministério que é sinônimo da
diplomacia: o Itamaraty, que registra casos recorrentes de embaixadores
assediando sexualmente as funcionárias sem receber punição. “O fato de não
haver mulheres na alta cúpula explica como um assediador pode ocupar o mesmo
cargo até hoje, pois há apoio de chefes”, afirma uma integrante do Grupo de
Mulheres Diplomatas, que falou à ISTOÉ sob anonimato. Para mudar esse cenário,
é preciso que haja também envolvimento dos homens.
“Eles precisam entender a necessidade de abrir um espaço que
é nosso mas que não estamos ocupando”, afirma a promotora Gabriela Manssur,
autora do projeto Tempo de Despertar, curso voltado para explicar a agressores
de mulheres a gravidade do crime e evitar que voltem a cometê-lo.
Nada a perder
Manifestações, campanhas, protestos, grupos, apoios. As
redes de mulheres crescem e mostram o caminho que o feminismo brasileiro deve
seguir nos próximos anos. A advogada Najara Barreto, 37 anos, é um exemplo de
como uma ajuda pontual pode se expandir para o coletivo. Espancada pelo marido,
não via a possibilidade de se separar por não trabalhar e ter que cuidar dos
filhos. Com a ajuda do projeto Justiça de Saia, da promotora Gabriela Manssur,
que auxilia vítimas de violência doméstica, conseguiu um emprego, se separou e
hoje trabalha na equipe de Manssur. “Passo meu celular pra quem quiser,
converso com as mulheres pelo Whatsapp, dou apoio total. Depois do que passei e
por ter conseguido me reerguer, quero fazer com que outras vítimas sejam salvas
também”, diz. A projeção que o movimento feminista e de solidariedade tem
ganhado pode acarretar, segundo Tiburi, em um avanço reacionário. “O feminismo
vai ser combatido porque é inovador e transformador, porque garante liberdades
individuais e é ultrademocrático. A lógica da história é essa”, diz. “O sistema
social atual cria o medo: de denunciar em uma delegacia, de procurar ajuda, de
se manifestar”, afirma Tiburi, que conclui: “Mas as mulheres perceberam que
perderam espaço, que são violentadas, fisicamente e em sua dignidade, no seu
corpo e no seu trabalho. E agora não há nada a perder com essa luta, que só vai
crescer.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário