BRASÍLIA Ex-mulher do candidato à Presidência pelo
PSL, Jair Bolsonaro, Ana Cristina Valle afirmou ao Itamaraty em 2011 que foi
ameaçada de morte por ele, o que a levou a deixar o Brasil. O relato consta de
um telegrama reservado arquivado no órgão, ao qual a Folha teve
acesso. Na época Bolsonaro e Ana Cristina travavam uma disputa judicial no
Rio de Janeiro sobre
a guarda do filho do casal, então com cerca de 12 anos.
“A senhora Ana Cristina Siqueira Valle disse ter deixado o
Brasil há dois anos [em 2009] ‘por ter sido ameaçada de morte’ pelo pai do
menor [Bolsonaro]. Aduziu ela que tal acusação poderia motivar pedido de asilo
político neste país [Noruega]”, diz o telegrama.
Em outro trecho do documento, Ana Cristina disse considerar
que, ao procurá-la, o vice-consulado do Brasil na Noruega “estava agindo em
nome do deputado federal Jair Bolsonaro”.
O mesmo telegrama havia sido liberado à Folha pela
Lei de Acesso à Informação, porém com esses e outros trechos cobertos por tarja
preta. Duas fontes ouvidas pela reportagem e o então embaixador, Carlos
Henrique Cardim, que assina os textos, confirmaram a íntegra dos documentos.
Atualmente Ana Cristina, ex-servidora da Câmara Municipal de
Resende (RJ), usa o sobrenome “Bolsonaro” e é candidata
a deputada federal pelo Podemos. Ela disse
apoiar a candidatura do ex-marido ao Planalto e considerou “superado”
o episódio na Noruega, apesar de ter admitido ter sido pressionada por ele à
época.
Conforme a Folha revelou no domingo (23), Bolsonaro
mobilizou o Itamaraty, em 2011, como deputado federal, para que o órgão
intercedesse em seu favor depois que Ana Cristina viajou para a Noruega com o
filho do casal.
Segundo o site do Itamaraty e resposta enviada à reportagem,
o órgão não pode interferir em assuntos pessoais de brasileiros no exterior. No
entanto, em 2011 localizou e manteve contato com Ana Cristina a pedido de
Bolsonaro.
A afirmação dela sobre a suposta ameaça de morte consta da
íntegra de um telegrama de julho de 2011 enviado a Brasília pela Embaixada
Brasileira em Oslo e escrito por Cardim a partir de informações prestadas pelo
vice-cônsul naquele país.
Procurado pela reportagem, o diplomata, professor do
Instituto de Ciência Política da UnB (Universidade de Brasília), disse se
recordar do conteúdo do documento. Ele contou que, em julho de 2011, foi
acionado por escrito pelo Itamaraty, em Brasília, e também procurado por
Bolsonaro, com quem conversou por telefone. Segundo Cardim, Bolsonaro estava
contrariado com o fato de sua ex-mulher ter viajado, sem a sua autorização, com
o filho para a Noruega.
Depois da conversa com o deputado, o então embaixador
recebeu as informações do vice-cônsul do Brasil em Oslo, que havia entrado em
contato telefônico com Ana Cristina. Segundo Cardim, o procedimento “segue uma
rotina das embaixadas do Brasil”.
“Foi explicada a ela a legislação do Brasil, da Noruega. E
aí ela mencionou para o vice-cônsul que estava pensando em pedir asilo. E que
teria dito ao vice-cônsul que sofreu uma ameaça de morte do deputado Bolsonaro.
E o vice-cônsul me transmitiu isso”, descreveu o ex-embaixador à Folha.
Cardim disse ainda que, com o telegrama, fez apenas “um
relato” da situação. “Não estou aqui [no telegrama] julgando se houve ou não
essa ameaça. Só estou registrando o fato que ela falou para o vice-cônsul. E
ponto. Lá [embaixada] não é delegacia de polícia. Se ela quiser apresentar uma
queixa, ela vai a uma delegacia de polícia no Brasil, apresenta, é outro processo,
compreende?”, explicou o diplomata.
A conversa de Ana Cristina com o funcionário do Itamaraty,
um oficial de chancelaria que exercia a função de vice-cônsul, ocorreu porque
Bolsonaro havia procurado, dias antes, a sede do Itamaraty em Brasília para
pedir uma intervenção do órgão a respeito do paradeiro de seu filho.
O vice-cônsul na época era Matheus Henrique Zóqui, que,
procurado, não se manifestou sobre o assunto.
Por lei, segundo o embaixador, uma criança só podia sair do
país acompanhada de apenas um dos pais desde que houvesse junto uma autorização
do pai ou da mãe que não estivesse na viagem.
A íntegra de outro telegrama, agora também obtida pela Folha,
mostra que Bolsonaro relatou ao Itamaraty que Ana Cristina havia obtido um
passaporte para seu filho “com base em certidão de nascimento expedida antes do
reconhecimento de paternidade feito pelo deputado Bolsonaro”. Dessa forma,
no documento constaria apenas o nome da criança como Renan Valle, sem o
sobrenome do deputado, e, no campo da filiação, não aparecia o nome do
pai. O telegrama não esclarece quando Bolsonaro reconheceu a paternidade
do menino.
Na reunião em Brasília, Bolsonaro disse, segundo o
telegrama, que seu filho morava há dois anos em sua residência do Rio de
Janeiro, “onde frequenta escola e tem sua vida estruturada”. O deputado disse
ainda que o gesto da ex-mulher “constituiria falsidade ideológica com intuito
de sequestro” e, por isso, pediu a “gestão do Itamaraty para averiguar as
condições em que estaria o menor”.
OUTRO LADO
Procurado por meio de sua assessoria, Bolsonaro não havia se
pronunciado até o fechamento desta reportagem. Ele está internado no hospital
Albert Einstein, em São Paulo, se recuperando de um atentado
a faca sofrido em Juiz de Fora (MG) no último dia 6.
Em entrevista à Folha na semana passada,
Ana Cristina disse que o deputado estava equivocado porque ela não tinha a
intenção de fugir com a criança, e sim passar um período de férias na Noruega
porque o menino reivindicava a presença da mãe ao seu lado. Ela disse que a
ligação telefônica dada pelo pessoal da Embaixada foi para seu marido
norueguês, e não para ela.
“Foi uma pressão que [Bolsonaro] fez. Mas é uma questão de
pai, de foro íntimo, entendeu, de família mesmo. Eu achava que ele nem deveria
ter feito isso, mas se ele fez... E depois acabou tudo bem, ele tirou a ação
[que corria no Rio] e ficou tudo bem. [...] É coisa de pai, que eu respeito
ele, porque ele tem um amor fora do comum pelos filhos”, disse Ana Cristina.
Nesta terça-feira (25), novamente procurada pela reportagem,
Ana Cristina disse por mensagem de aplicativo de telefone celular que “não
falou com nenhum cônsul ou vice”. Indagada se falaria com a reportagem ao
telefone, ela respondeu: “Sobre este assunto não tenho nada a dizer”. Questionada
se houve ameaças de morte de Bolsonaro contra ela por volta de 2009, ela
respondeu que havia conversado com seu marido norueguês e ele “falou que não
disse nada disso”. “Acho que vocês estão pegando pesado falando isso”, escreveu
Ana Cristina.
Procurado pela Folha nesta terça-feira (25)
o Itamaraty informou, por meio de sua assessora, que, “em razão do direito
constitucional à privacidade, reafirmado na Lei de Acesso à Informação, o
Ministério das Relações Exteriores não se pronuncia sobre questões específicas
envolvendo brasileiros no exterior”.
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