‘Satanás, pegue tudo o que é seu e deixe esta nação.” Esta
frase do Cabo Daciolo diante da fogueira era apenas um lembrete de que estas
eleições parecem um sonho dentro de sonhos.
Posso imaginar o Satanás, posso vê-lo retirando seus
pertences como um passageiro após a aterrissagem. Não consigo imaginar o que
Satanás tem de carregar, esse tudo o que é seu.
Não tenho tempo para divagar sobre isso. Prefiro esperar a
saída dele e, ao me dar conta das coisas que estão faltando, possa concluir que
foram levadas por Satanás.
Outro dia, algumas pessoas me xingavam na rede. E não eram
as mesmas de sempre. Descobri que foi um delírio do Ciro Gomes.
Numa entrevista a um repórter de esquerda, ele confessou que
salvou Lula do mensalão e que para isso falou com várias pessoas. Eu,
inclusive. Nunca houve essa conversa. Trabalhava na CPI dos Sanguessugas, que,
aliás, foi bastante dura. Ciro contou essa história para impressionar o PT. Já
foi punido porque o PT lançou Haddad.
E as pessoas que me xingaram, essas também estão perdoadas
porque carregam o fardo cognitivo de acreditar em bravatas de campanha.
Vamos à realidade que também parece um sonho: as pesquisas
apontam para um duelo entre dois líderes populares, um na cadeia, outro, no
hospital.
Claro que o duelo entre os dois envolve visões diferentes de
mundo, conflitantes realidades. Eles apenas encarnam fortes correntes na
sociedade
Tanto Lula quanto Bolsonaro, além de suas personalidades, representam
também o êxito da comunicação verbal, com seus encantos e defeitos.
São nomes falados em todo o território nacional. Escapam do
círculo relativamente pequeno do universo político e se entendem com quem
querem se entender.
Às vezes, um milionário, estimulado por marqueteiros, faz
uma investida, mas descobre logo que o mar é imenso, quantos não morrem alguns
metros além da praia? Ao que tudo indica, os dois personagens encarnam
multidões, ávidas por mudanças e pela continuidade.
Depois de anos de dominação da esquerda, a grande
interrogação do processo é saber se continua ou dá lugar às forças de oposição
que cresceram no combate ao governo petista.
Isso me parece a realidade. Mas, como o processo é
imprevisível, o fato de se encarnar em duas pessoas aumenta sua
imprevisibilidade.
Tenho a impressão de que essas grandes tendências se movem
de uma forma tão autônoma que não vejo espaço para a ação individual detê-la,
embora ache que os candidatos devam continuar lutando, os eleitores votando no
que acharem o melhor etc.
Mas, por via das dúvidas, creio que o mais prudente é se
preparar para uma nova realidade, onde uma dessas forças será a vencedora.
Em termos eleitorais, os moderados foram engolidos pela
onda. Isso não significa que não terão importância no futuro. Apesar de tudo, a
moderação é a única força capaz de empurrar os vencedores para a ideia de um
projeto nacional mais abrangente, superar o clima nostálgico de Guerra Fria que
envolve os contendores.
Apesar dos excelentes livros sobre o declínio da democracia,
esse enredo foi vivido intensamente no Brasil. O Congresso, de baixo nível,
tende a não se renovar. O Supremo se desgastou ao vivo e a cores.
Cabo Daciolo convida para uma luta contra principados e
potentados. Adoraria estar junto, mas dificilmente terei tempo na vida real.
O cenário que se desenha não é o melhor para um grande
projeto de reconstrução. No entanto, precisamos sair dessa maré. De qualquer
forma, a nova conjuntura vai inspirar cuidado. Esta palavra é sempre associada
aos mais velhos.
De fato, na juventude, cuidado não era assim tão valorizado.
Pura irresponsabilidade? Parcialmente, por acreditar na destruição construtiva,
uma vontade de virar a mesa.
Assim como Satanás, segundo o Cabo Daciolo, tem que preparar
suas coisas e deixar a nação, fico me perguntando que coisas tenho de juntar
para a fase que se aproxima.
Uma delas, certamente, é saber que, apesar de sua decadência,
não podemos passar sem a democracia, que, por sua vez, precisa evoluir.
A realidade está aí. É possível se perguntar onde tudo
começou, dizer “bem que avisei”, buscar os culpados. Suspeito que não nos dará
tempo para divagações. Em outras palavras: apertar os cintos.
Artigo publicado no O GLOBO em 24/09/2018
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