De novo na estrada, no centro de Minas, a 700 quilômetros do
Rio. Deixei um clima político bastante polarizado. A série de entrevistas com
candidatos mostrou como o mesmo trabalho pode parecer contrário ou a favor do
entrevistado, dependendo do ângulo do espectador.
Eu mesmo fui criticado por não ter respondido ao general
Mourão sobre heróis e tortura. As pessoas talvez desconheçam a fronteira entre
uma entrevista e um debate.
Como jornalista, ouço as pessoas, registro no meu caderno ou
gravo as opiniões colhidas. Às vezes, refaço a pergunta, apenas para obter mais
transparência nas ideias e projetos. Quando a entrevista é em conjunto,
trata-se de um ritual coletivo que tem como objetivo oferecer uma visão mais
completa do personagem, dentro de um determinado prazo.
Se alguém diz “heróis matam”, não posso contestá-lo. E se o
fizesse, diria apenas que heróis também matam, a julgar pela História,
inclusive da esquerda e das lutas anticoloniais.
Heróis morrem pela liberdade, ora lutando pelos irmãos de
cor, como Martin Luther King, ora pela paz, como Mahatma Ghandi. Herói apenas
salvam vidas, como a professora Helley Abreu, na escola incendiada em Janaúba.
Às vezes, heróis não matam nem morrem. Simplesmente
dedicam-se a ajudar os outros. Conheci Noel Nutels no aeroporto de Belém, e ele
me contou como cuidava dos índios, sobretudo de seu pulmão. Fiquei
impressionado com ele até hoje. Isso tem mais de meio século.
Não conheci Nise da Silveira pessoalmente. Mas quando vi o
que fez pelos doentes mentais, livrando-os do choque elétrico e despertando sua
visão estética, compreendi que sua vida também teve um grande propósito.
Quanto à tortura, sou bastante tranquilo ao condená-la.
Hoje, o Brasil subscreve acordos internacionais que a varrem de nossas práticas
cotidianas. Não significa que cessaram: apenas são ilegais.
Ao defender a tortura em nome de grandes ideais, a direita
cai na mesmo equívoco da esquerda. Adota o lema: os fins justificam os meios.
Na minha cabeça, essas coisas são claras. Como tenho a
possibilidade de me expressar por artigos e uma longa existência por trás de
cada opinião, estou à vontade percorrendo o Brasil, ouvindo as pessoas.
Não me importam se racionais, sensatas, delirantes ou
alucinadas: gosto de ouvi-las. O alívio de voltar a elas se deve à sua leveza e
complexidade. Uma leveza que não atrai torcidas contra ou a favor, como um
candidato. E uma complexidade que não nos seria possível antever, se
Shakespeare fosse um escritor com viseiras ideológicas.
Não acho que valha a pena agora uma discussão sobre 1964 ou
sobre a Guerra do Paraguai. O agora é muito delicado.
Esta semana tentei usar a França para formular uma hipótese.
Lá, depois de um período de barricadas de esquerda, sobrevém um governo de
ordem. De Gaulle venceu as eleições depois do Maio de 68. A tendência no Brasil
foi a do fortalecimento de uma visão que deseja ordem e seriedade na condução
do governo.
Minha dúvida ainda se apoia nessa referência à França. De Gaulle
representava um tipo de autoridade. Le Pen e sua filha Marine, da extrema
direita, apenas chegaram ao segundo turno das eleições. A ascensão de seu
movimento não foi suficiente para ganhar o governo.
Sei como é precário comparar um país com outro. Mas o que
posso fazer, senão usar também algumas memórias?
Ninguém sabe do futuro. É possivel usar como exemplo a
vitória de Trump. Mas ele tinha uma condição especial: milionário, apoiado por
uma rede de TV, integrado, com um pouco de desconforto, num grande partido.
O que restou dessa passagem mais longa pelo Rio, respirando
o clima eleitoral, candidatos, equipes, planos, sai um pouco apreensivo.
O clima de radicalização está levando as pessoas a lerem
apenas notícias com as quais concordam. Cerca da metade das intervenções na
rede negava a facada em Bolsonaro. Se continuarmos assim, abrigados em tribos,
acreditando apenas no que queremos acreditar, será cada vez mais difícil a vida
de quem não habita os extremos.
Para os intelectuais, é um perigo de morte. Se você acha que
sabe tudo, que tem a correta visão do mundo, não precisa ler os outros,
confrontar argumentos, corrigir erros, a tendência é a fossilizacão.
E nem para os fósseis a vida está fácil no Brasil, Luzia que
o diga.
Artigo publicado no Globo em 17/09/2018
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