Da ÉPOCA
Em um ponto da barafunda humana e política a que chegamos os seguidores de Jair Bolsonaro têm razão: ele sempre foi um homem coerente. Eu diria o mesmo: ele sempre foi rigorosamente coerente – embora nem sempre tenha se expressado com clareza, dadas as dificuldades com a linguagem que o acometem em momentos de pressão. Ao longo de sua vida política, o deputado de extrema direita, ex-tenente do Exército e capitão reformado, reafirmou com firmeza uma postura acintosa de confronto às leis e direitos civis existentes no país e aos pactos humanistas originais e fundamentais da democracia liberal constituída no Brasil em 1988. A própria existência do Estado Democrático de Direito simplesmente não o agrada, tendo-o desprezado abertamente, em público e em qualquer lugar do mundo.
Posicionando-se entre cínico, niilista, sádico, adolescente ou fascista, o deputado autoritário desdenhou permanentemente do mundo político brasileiro, que o alimentava com grandes privilégios. Pregava um modo de vida política livre de compromissos sociais, éticos ou institucionais, em um mundo próprio de opiniões extralegais, para o júbilo do extrato mais cínico, sádico, niilista, fascista ou adolescente dos cidadãos brasileiros. Sou contra os direitos humanos sim; sou a favor da tortura sim; desprezo homossexuais e quero que eles sejam discriminados sim; este país não tem solução por meio de uma ordem democrática não; eu fecharia o Congresso no dia seguinte que chegar ao poder sim; mataria trinta mil pessoas de esquerda, a começar por Fernando Henrique Cardoso sim. Estas são algumas das mais fantásticas, violentas e antidemocráticas afirmações do passional e destemperado deputado. Em um horizonte mais amplo dos sentidos, contrariam até as normas humanistas ou cristãs.
Bolsonaro, neste sentido, sempre esteve fora da lei. Sua vida política imaginária correu por fora do pacto social que nos constitui e que aceitamos. Sua paixão política o fazia questionar as raízes do contrato social estabelecido, desconsiderando-o desde sempre. Mais recentemente, começou a tentar se preservar, com grandes dificuldades, do impacto desorganizador de suas próprias opiniões. Elas o punham em risco, embora atraíssem fortemente o público brasileiro maniqueísta e agressivo como ele. Já em campanha para a Presidência da República, um Jair Bolsonaro “controlado” desdenhou publicamente do valor do trabalho das mulheres, das próprias mulheres, dos direitos de indígenas e quilombolas, dos próprios índios e quilombolas, da história da escravidão negra no Brasil, dos próprios negros. Em escandalosa agressão ao Estado de direito, falou muito feliz do alto de um palanque em metralhar seus adversários políticos. Não há dúvida que, em um país mais sério, de tradições democráticas um pouco mais sólidas e exigentes do que as nossas, todas essas posições teriam graves consequências políticas e legais contra o político antissocial. Qualquer coisa pode ser dita do candidato de tendências ditatoriais e de promoção explícita da cultura da violência no Brasil atual – menos que ele engane alguém a respeito de quem verdadeiramente é.
Seus seguidores, quando confrontados com a violência cultural e política de clara ilegalidade do deputado candidato, insistem – meio cínicos, meio niilistas, meio mentirosos, meio adolescentes – em dizer que ele não é bem aquilo o que diz ser. Ou afirmam que o que ele diz não é exatamente o que ele diz. Ou afirmam que é o ouvinte que o ouve erradamente. Tentam nos dizer que eles próprios não são assim tão violentos e tão belicosos quanto o político no limite do acordo civilizatório que desejam levar ao poder.
A estrutura de pensamento perversa, quando ativada, precisa aparecer no mundo como não sendo o que ela de fato é. Muitos intelectuais pouco preocupados com a agonia da democracia brasileira – e com a vida das futuras vítimas reais do pensamento do deputado e de seus seguidores mais fanáticos – insistem em dizer que o seu autoritarismo ilimitado, a sua clara transformação da vida política em violência sobre adversários e o seu desprezo constante pela ordem legal existente não representariam um movimento neofascista no Brasil. Refutam proximidade com o fascismo de Mussolini dos anos de 1920 na Itália, em um curto circuito do sentido da verdade típico do choque cultural fascista. Pela primeira vez em nossa história, todos, mesmo os que votam no político, preferiam de algum modo que ele esteja mentindo sobre seu modo de ver a vida, o país e o mundo.
quarta-feira, 24 de outubro de 2018
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