Este é o meu último artigo do período de transição. No ano
que vem a coisa começa. É hora de a onça beber água, a cobra fumar, o tatu sair
da toca. Termina uma longa experiência em que predominaram ideias de esquerda,
começa uma experiência liberal conservadora, de certa forma inédita, pois
sempre se definiu assim, sem subterfúgios.
Um dos truísmos mais presentes na política é afirmar que nem
sempre as coisas acontecem como planejado por seus atores. Em alguns casos
podem até se transformar no oposto do desejado.
O projeto político iniciado em princípio de 2003, com a
vitória de Lula, pretendia levar o Brasil a um novo patamar de liberdade e
justiça social. Terminou em crise econômica, milhões de desempregados e alguns
atores, o principal incluído, atrás das grades.
Durante muitos anos estudei o marxismo e constatei, na
prática, a inadequação de suas teses. Talvez por temperamento, desde a
juventude sempre tive um pé atrás com a ideia de que a História é regida por
leis inflexíveis e obedece a um script inevitável.
Quando ouvia as pessoas repetirem o slogan cubano “até a
vitória sempre”, costumava responder: sempre que possível.
Era uma abertura para o inesperado, no fundo uma rebeldia
contra um mundo pré-desenhado, um cemitério da criatividade humana. Minhas
críticas e revisões das ideias de esquerda me valeram algumas antipatias. Nada
de grave. Foi possível continuar pensando e escrevendo num clima quase
razoável.
Possivelmente, em alguns momentos, vou desagradar aos
liberais conservadores. Mas o que fazer? A alternativa seria concordar com uma
euforia que a longa experiência não autoriza.
De modo geral, faço perguntas, não acusações. Uma das
perguntas-chave que faço aos conservadores que chegam ao poder com a esperança
de propagar sua fé cristã é: não estão chegando tarde demais a um mundo
secularizado, onde a tradição e a cultura não podem ser apoiadas numa fé
transcendental compartilhada?
Uma das referências que tenho é a passagem de Margaret
Thatcher pelo governo inglês. Além de sua firme decisão de enfrentar
corporativismos, ela manifestou muita simpatia pela moral vitoriana, tempos
mais íntegros e felizes, segundo ela. Ao deixar o poder, Thatcher deixou também
uma Inglaterra bem mais permissiva do que encontrou.
Aos conservadores brasileiros, para quem o bolo dos costumes
desandou, deverá ficar claro que é difícil cozinhá-lo de novo, restando apenas
cuidar do que existe, olhando para o futuro. Dito assim, parece complicado.
Mas, na prática, é o que está acontecendo. A ministra de Direitos Humanos,
Damares Alves, parece ter adotado esse caminho ao afirmar que a união civil gay
é um direito adquirido e não vai questioná-la.
Depois de passar muitos anos criticando a miopia marxista
diante das questões ambientais, terei a irônica tarefa de demonstrar aos
conservadores que a preservação é uma ideia deles que foi introduzida de
contrabando no marxismo. Karl Marx sempre partilhou com alguns pensadores
burgueses a ideia de um progresso infinito, sem limites objetivos. Se saímos do
árido campo das ideias e vamos de novo à prática, basta observar a catástrofe
ambiental que foi o socialismo no Leste Europeu, a degradação da atmosfera nas
cidades chinesas.
O PT em 2002 ainda acreditava, como os partidos comunistas
da esfera soviética, que o principal problema era crescer, dar empregos,
melhorar o padrão de vida dos trabalhadores. Estava aí, ainda que incipiente, a
raiz das nossas principais divergências.
Compreendo que forças emergentes tenham uma linguagem de
sonho, que no fundo almejem a felicidade de seus governados. Mas a História tem
mostrado, exceto pelo idealismo do rei do Butão, que dificilmente a felicidade
se conquista pela ação de governos.
Tudo o que se pode fazer é minorar suas dificuldades,
ajudá-los a conviver, como diz o poema de Yeats, com a desolação da realidade.
Quando jovem de esquerda, alguns me irritavam por sua dose
de realismo: Raymond Aron, Isaiah Berlin, George Steiner. Eles despiam a
revolução de seus figurinos românticos e me deixavam só e desesperançado.
Neste momento em que o Brasil se prepara para viver uma
experiência em que a religião tem grande peso, é necessário em primeiro lugar
reconhecer a importância dos cristãos em nossa vida e cultura. Mas, ao mesmo
tempo, questionar suas certezas políticas, como fazia com os slogans marxistas.
De novo um exemplo para atenuar a aridez. Por que mudar a
Embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém? O quase consenso internacional
reconhece que ainda é uma cidade dividida.
Não foram grandes formulações de política externa que
levaram Bolsonaro a essa saída. Há uma pressão evangélica, natural, válida, mas
inadequada para comandar uma decisão nacional nesse campo. Para os evangélicos
americanos e brasileiros, a extrema direita em Israel tem grande importância.
Os evangélicos não leem a Bíblia apenas como um documento
sobre o passado. Confiam também em suas profecias, no seu roteiro para o
futuro. E essas profecias dizem que uma das condições para a volta de Cristo é
a recuperação pelos judeus da Terra Sagrada.
Não se trata de afirmar que isso seja um delírio, mesmo
porque não tenho preconceitos contra delírios. Muitas de nossas políticas são
um delírio. No entanto, quando se trata de política externa, é necessário, pelo
menos, um delírio consensual.
A ideia de conformar o mundo à nossa fé cristã é de natureza
diferente da criação de internacionais socialistas, Ursais e o escambau. Mas
pode sofrer o mesmo destino melancólico das religiões laicas num mundo – até
certo ponto, irreversivelmente – desencantado.
De qualquer forma, a aspereza do ano que vem vai nos levar a
preocupações mais concretas do que as do período transitório, fluido por
definição.
Artigo publicado no Estadão em 14/12/2018
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