sábado, 16 de março de 2019

A ANTIRREVOLUÇÃO DOS COSTUMES

Da ISTOÉ

Os progressos humanos já deixaram claro que não ter medo do conhecimento é a chave para que tudo avance. Foi um enorme salto quando a humanidade descobriu que a peste que devastou países no século 14 não era um castigo mandado por Deus, mas uma doença causada pela bactéria Yersinia pestis, transmitida ao homem por pulgas infectadas. Assim como foi bastante libertador para as mulheres contarem com a pílula anticoncepcional, a partir de 1960, dispondo finalmente de um meio eficaz de evitar a gravidez. O lançamento da pílula deu início à uma revolução sexual que ecoa até hoje e que tem como legado indiscutível ter tirado a discussão da sexualidade do porão e a levado para a sala de jantar. Ficou mais fácil falar de sexo e de tudo o que está associado a ele, inclusive da necessidade de prevenção das doenças que podem ser transmitidas durante o ato.

E isso é muito bom. Menos, ao que parece, para o presidente Jair Bolsonaro e parte de sua trupe de ministros. Comandando uma espécie de antirrevolução dos costumes em todas as áreas, o presidente determinou ao primeiro escalão do governo a implementação de uma série de ações com o intuito de fazer deslanchar uma pauta ultraconservadora, incluindo a questão de educação sexual – na verdade, uma deseducação. Parece uma obsessão e é isso que tem norteado a maioria das iniciativas nos primeiros meses de mandato. Também é o que embala a retórica presidencial não raro utilizada como uma espécie de válvula de escape. Toda vez que surge algo na imprensa capaz de constrangê-lo, o presidente ou mesmo algum ministro saca da cartola uma ideia, em geral polêmica, que possa promover o que chamam de guinada cultural. Não se trata de estelionato eleitoral, uma vez que boa parte da população o elegeu em nome justamente da promessa do cavalo de pau na agenda dos costumes. E é por isso que a estratégia mobiliza a militância nas redes, orienta os debates mais acalorados e, ao fim e ao cabo, tira o foco do que é essencial. O problema, no entanto, é maior do que simplesmente eclipsar o que deveria estar à luz do sol. Reside no fato de que muitas das medidas constituem retrocessos impensáveis.

Por falta de informação, a cobertura vacinal contra o HPV, vírus sexualmente transmissível, é baixa

Por exemplo, nos últimos dias, Bolsonaro determinou que sejam feitas mudanças nas cadernetas de vacinação para adolescentes distribuídas pelo Ministério da Saúde. Ele não gostou das páginas que explicam as transformações nas anatomias feminina e masculina ao longo da adolescência e muito menos das que apresentavam como colocar a camisinha para homens e a camisinha para mulheres. No entender de Bolsonaro, as imagens “não caem bem para meninos e meninas terem acesso”. O presidente fez o anúncio por rede social e disse ter sido alertado para o conteúdo por uma senhora, eleitora sua, que havia lhe enviado as figuras.

Autocuidado e prevenção

Assim, por sugestão de alguém que o País não conhece e que provavelmente ainda está na era em que sexo era pecado, o presidente da República botou abaixo dois anos de trabalho. Foi o tempo que levou para que especialistas, pais e adolescentes discutissem a questão a fundo e produzissem uma caderneta informativa e atraente para o público alvo. O Ministério da Saúde irá fazer as alterações pedida. Por enquanto, a que está no site é a que Bolsonaro quer apagar.

É lamentável que um retrocesso dessa natureza tenha ocorrido. Há décadas o mundo tenta tornar as informações sobre sexo mais acessíveis, coisa que se tornou ainda mais urgente depois da Aids. “Informação previne, e não o contrário”, afirma a bióloga Luisa Villa, chefe do Laboratório de Inovação do Instituto do Câncer de São Paulo. Sem falar de sexo, sem explicar a anatomia, como fazer com que o adolescente entenda o seu corpo? Como incentivá-lo a se proteger se ele não tem informação do que ocorre durante o ato sexual?

Essa é uma verdade aplicada a todas as áreas. Porém, o governo Bolsonaro parece atuar em bloco contra ela. Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por exemplo, insiste em retratar um mundo no qual, como ela mesma diz, menino veste azul e menina veste rosa. Há tempos isso não existe mais, e a liberdade de escolha do gênero e da opção sexual é uma das conquistas mais celebradas deste século. No entanto, Damares defende estereótipos ultrapassados. Na semana passada, durante uma fala sobre o Dia Internacional da Mulher, a ministra disse que os homens precisam respeitar as mulheres — o que é verdade — e fazer gentilezas como oferecer flores e abrir a porta do carro.

Não se está aqui condenando homens que fazem isso e tampouco mulheres que gostam de receber esses agrados. O que se critica é a insistência de uma ministra de Estado em algo nostálgico e estigmatizante quando a realidade da brasileira é bem mais dura do que não ter a porta do carro aberta para ela. Estão aí os dados de feminicídio para provar: só em 2018, 53 mulheres foram mortas porque eram mulheres. É o enfrentamento dessas questões que deve ser levado adiante por uma pessoa em sua posição, não o reforço de uma concepção de mundo que parece ter parado na década de 1950.

É essa impressão que se tem quando são analisadas várias ações bolsonaristas. No caso do ministro da Educação, Ricardo Vélez, às vezes parece que o mundo parou na década de 1970. Sua ordem para que os estudantes hasteassem a bandeira brasileira e cantassem o hino nacional no primeiro dia de aula determinava, na verdade, a implantação de uma prática comum durante os governos da ditadura. “A lei que mandava as crianças cantarem o Hino Nacional nas escolas públicas é de 1971”, lembra a educadora Cláudia Costin, fundadora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. “Não há problema em cantar o hino. O problema é mandar que tudo fosse gravado, tornar-se um slogan do governo”, afirma.

Bolsonaro e seus dois ministros, na verdade, parecem sentir saudades do tempo em que a revolução dos costumes ainda provocava efeitos tímidos. A insistência em tirar das escolas aulas de educação sexual remete à era dos colégios onde o assunto era simplesmente proibido. Um equívoco que a história já corrigiu, mostrando, cientificamente, os benefícios de colocar o tema em sala de aula. “Vamos pensar em evidências científicas, e não em crenças. Não há relação cientifica do tema com homossexualismo ou pedofilia. Não há como uma pessoa fazer da outra homossexual”, explica Claudia. É a ciência falando. E a ciência está no século 21, ao lado dos avanços e não dos retrocessos.

O sexo, segundo Bolsonaro

Mesmo antes de publicar o vídeo do “golden shower” no Twitter durante o Carnaval, o presidente Jair Bolsonaro demonstrava uma visão enviesada do sexo, principalmente da sexualidade alheia. Ele parece ver transgressão em tudo, toma manifestações isoladas como uma tendência geral de depravação e tem sempre como alvo principal de seus ataques os gays. Bolsonaro tem certeza que hoje há uma grande conspiração da esquerda na área de educação para induzir as crianças ao homossexualismo. É uma espécie de ideia fixa. Em poucas palavras, o que o presidente diz é que ativistas do movimento LGBT querem ensinar nas escolas as crianças como ser gay. No mundo imaginário de Bolsonaro há qualquer momento um professor pode tirar da manga uma cartilha com instruções para a prática do sexo anal ou com imagens de beijos entre duas mulheres. É isso que ele diz querer combater. O esforço de educadores para tornar a sociedade mais tolerante é visto como uma iniciativa libidinosa levada a cabo por pedófilos e gente traiçoeira.

Uma publicação que incomoda especialmente o presidente é “Aparelho Sexual e Cia — um guia inusitado para crianças descoladas”, livro francês escrito por Hélene Bruller e ilustrado pelo cartunista suíço Zep, editado pela Companhia das Letras. Seu conteúdo é destinado à orientação sexual de jovens de 11 a 15 anos. A obra trata com um tom bem humorado de assuntos relacionados à sexualidade adolescente e envolve questões básicas como o nascimento de bebês e os dilemas da puberdade. Há anos, Bolsonaro combate esse livro como um exemplo de deformação moral. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro tentou transformá-lo num símbolo da conspiração homossexual ao mostrá-lo no Jornal Nacional. Para Bolsonaro, a obra é um conjunto de atrocidades e integra o fantasioso “kit gay”. “A minha briga é com o kit gay. Não quero que crianças de seis anos de idade tenham acesso ao kit gay. Você quer que se ensine crianças de seis anos de idade que o menino deve enfiar o piu-piu no bumbum de outro homem?”. Segundo o presidente, o livro “estimula as crianças precocemente para o sexo e, além disso, escancara as portas da pedofilia”. Bolsonaro tem aversão à educação sexual nas escolas. Nos últimos anos, se dedicou a atacar o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, lançado em 2009, que, segundo o presidente, usa o público LGBT para difundir nas escolas questões que os pais não querem para seus filhos.

O presidente dizia que o plano criava cotas para professores homossexuais “Aqui é mais importante colocar na cabeça do menino que ele não é menino e da menina que ela não é menina, como foi aplicado na prova do Enem”, afirma. “Há uma minoria de ativistas homossexuais que ganham dinheiro com isso, se atocaiam, fazem uma emboscada no pessoal de primeiro grau. Os pais deixam seus filhos na escola e lá eles vão ter aula de homossexualismo. A título de combater a homofobia as crianças vão ser presas para pedófilos.”

“Informação previne, e não o contrário. É nosso dever informar sobre o uso correto da camisinha” Luisa Villa, bióloga

Bolsonaro deveria ser menos intolerante. Para alguém que declarou ter feito sexo com animais, em especial com galinhas soa estranho falar em combater a sexualização precoce. “Ir atrás de galinha no galinheiro todo mundo ia. Entendeu? Alguns mais malandros pegavam na jumentinha, na bezerrinha. Naquele tempo não havia mulher”, disse ele em uma entrevista ao programa CQC, em 2017. Ou seja, com galinha pode, mas com o amiguinho nem pensar.

“Como esse livro (Aparelho Sexual & Cia) está para crianças de seis, sete anos, eu posso falar que ninguém vai ficar com vergonha. Um menino com um pintão enorme aqui no livro, eles se beijam etc. Para que serve isso aqui? Para deformar o caráter das criancinhas”

“Eu não deixaria um filho meu, de cinco anos de idade, ir brincar na casa de outro menino da mesma idade que tenha sido adotado por um casal gay”

“Qual é o pai que tem orgulho de ter um filho gay? Não tem. Ele convive e deve respeitar. Agora, eu nunca vi um baile de debutante patrocinado por esses pais”

“Eles querem estimular a pedofilia. Eles querem sensualizar as crianças precocemente. É uma esculhambação o que fazem com a educação no Brasil”

“Olha, homofobia não existe. Não é por que o cara faz sexo com o seu órgão excretor que vai ser melhor do que os outros”
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