quinta-feira, 21 de março de 2019

A MISÉRIA COMO CAPITAL POLÍTICO

Editorial O Estado de S.Paulo

O programa Mais Médicos, não é novidade, nunca foi mais do que um estratagema do governo de Cuba para obter de países com déficit de profissionais na área de saúde pública os recursos necessários para o financiamento da anacrônica ditadura castrista. Mas, à medida que o tempo passa, são conhecidos novos limites do uso político de um programa que nunca teve o bem-estar de milhões de desassistidos como prioridade, a despeito do que imaginam os românticos do pansocialismo.

Reportagem do jornal The New York Times mostrou que o regime de Nicolás Maduro usou os médicos cubanos para coagir a população venezuelana com vistas a obter ganhos políticos na campanha pela reeleição. Maduro saiu vitorioso do pleito de maio do ano passado, mas a eleição não passou de um simulacro, o que levou a maioria dos países que compõem o Grupo de Lima, inclusive o Brasil, a não reconhecer sua legitimidade. A decisão foi acompanhada por Estados Unidos e União Europeia.

Yansnier Arias, um dos 16 médicos cubanos ouvidos pela reportagem, disse que recebeu ordens de seus superiores para não prestar socorro a um paciente que sofria de insuficiência cardíaca porque – pasme o leitor – os cilindros de oxigênio que deveriam ser usados no tratamento teriam de ser “reservados” para uso mais próximo da data da eleição. Os tanques de oxigênio, segundo seus superiores, seriam “uma arma política” da ditadura de Maduro. Arias deixou o programa e hoje trabalha no Chile.

Os médicos dissidentes relataram que foram obrigados a ir de casa em casa nos bairros mais pobres da Venezuela oferecendo remédios e advertindo os moradores de que estes poderiam deixar de receber cuidados médicos caso não votassem em Maduro e nos candidatos do Partido Socialista indicados pelo caudilho.

Carlos Ramírez, um dentista cubano que fez parte do programa equivalente ao Mais Médicos na Venezuela, contou que a estratégia ditada por seu superior era a de oferecer tratamento e remédios aos pacientes, pouco a pouco ganhar a confiança deles e, a partir de então, abordar os temas de cunho eleitoral sempre em favor dos interesses do regime de Maduro. Um dos colegas de Carlos Ramírez, que não quis se identificar, foi ainda mais claro e afirmou que o que lá se praticava era chantagem pura e simples. “Você não vai ganhar remédios. Você não receberá mais tratamento. Você não fará exames pré-natais (se acaso não votar em Maduro)”, disse.

A desumanidade diz muito sobre os propósitos cubanos com a exportação de um dos mais rentáveis “produtos” da ilha caribenha. Os médicos que integram o programa de assistência internacional têm escassa – se não nenhuma – autonomia. Grande parte do que recebem mensalmente vai para os cofres do regime. Suas necessidades particulares são de tal ordem submetidas às do Estado que seus familiares nem sequer podem acompanhá-los nos países onde servem. Os profissionais são menos indivíduos do que mercadorias a serviço de um projeto de poder.

Portanto, é inimaginável que as barbaridades que os médicos cubanos foram obrigados a cometer na Venezuela fossem desconhecidas por Havana. Por muito menos, é bom lembrar, Cuba rompeu unilateralmente o contrato do Mais Médicos com o Brasil, no final do ano passado. O governo de Miguel Díaz-Canel não gostou de uma declaração do então presidente eleito Jair Bolsonaro na qual ele revelou a intenção de “rever os termos do programa”. Para o regime cubano, a declaração foi “ameaçadora e depreciativa”. Ao que parece, nada há de errado em condicionar a prestação de socorro à política desde que o país contratante esteja alinhado com interesses de Havana.

O desvirtuamento do Mais Médicos na Venezuela também é revelador sobre a índole de Nicolás Maduro, um ditador que usa a própria miséria que impingiu ao povo de seu país para dela extrair o maior capital político possível. Quando se pensa no quão torpes podem ser as ações do ditador venezuelano, sempre há espaço para novas surpresas.
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