É tentador atribuir os atropelos deste início do mandato do presidente Jair Bolsonaro principalmente à sua personalidade, à inexperiência política de seus aliados ou até à heterogeneidade de concepções e de métodos dos grupos mais importantes que formam o governo. Isso tudo é verdadeiro e o enfoque é plausível, de modo que a maioria tende a jogar todo o peso dessas dificuldades nas idiossincrasias do atual governo e quase desconsidera os limites impostos por nosso disfuncional sistema político, resumido na combinação do presidencialismo com o um Legislativo pulverizado em 28 partidos, dos quais 14 não ultrapassam 5% das cadeiras na Câmara.
Reconhecer, como cabe, e como considero, que parte da instabilidade atual é de fabricação própria do governo Bolsonaro não deveria obscurecer o fato de que as dificuldades de formação de maiorias programáticas seriam inevitáveis qualquer que fosse o governo, em razão do nosso desagregador modelo eleitoral e partidário.
O que a maioria dos brasileiros espera e exige? A retomada do desenvolvimento econômico, com mais e melhores empregos, ao lado de drástica redução nos índices de violência.
Nenhum passo importante será dado na direção do desenvolvimento sustentado sem um forte ajuste fiscal. Nossa situação fiscal é patologicamente injusta. A carga tributária é elevada para um país emergente, além de mal utilizada. Os investimentos públicos minguaram, a nossa infraestrutura decadente não permite aumentos sistêmicos de produtividade e a política fiscal beneficia os mais ricos. Os salários do funcionalismo público não têm relação alguma com a produtividade e os regimes de previdência dos servidores não têm sustentabilidade atuarial. Em resumo, transformaram-se em instrumentos de concentração de renda.
Nos esforços de redistribuição de renda, as transferências governamentais acabaram perdendo o foco. O Bolsa Família, um programa verdadeiramente voltado para quem mais precisa, gasta pequena fração de outras transferências – como os benefícios de prestação continuada e aposentadoria rural –, que, embora meritórias em sua concepção original, têm sido vítimas de fraudes e de critérios inadequados de acesso.
Ufa! Criou-se hoje um quase consenso quanto à necessidade prévia ou simultânea de uma reforma substantiva da Previdência para desatar esses nós. Fala-se menos, no entanto, de outra condição imperativa: a criação de espaço para o aumento do investimento público e privado, com redução dos juros. O Brasil investe atualmente medíocres 16% do PIB, uma taxa muito menor que a de países já desenvolvidos, como Suécia (22%), França (22%) ou Coreia do Sul (31%).
Tornou-se inadiável também o enfrentamento do problema da segurança pública. Em 2016 a taxa de homicídios por 100 mil habitantes ultrapassou a marca de 30, segundo a última edição do Atlas da Violência. Das 50 cidades mais violentas do mundo, 14 são brasileiras, conforme estudo da ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz. E, de forma preocupante, o crime organizado espalhou-se por todas as regiões do Brasil.
O combate à violência e ao crime organizado demanda ações em várias frentes, incluída a esfera legislativa. Nossas leis têm numerosas brechas que incentivam a impunidade. E a impunidade é, isoladamente, a causa mais importante dessa espiral de violência.
Diante desses desafios formidáveis, que requerem amplo consenso, temos um sistema político fragmentado, incapaz de formar maiorias e competentíssimo para opor vetos. A situação vem piorando a cada eleição. Um indicador do grau de fragmentação parlamentar é o número de “partidos efetivos”, proposto pelos pesquisadores Laakso e Taagepera. Esse número não se confunde com o de partidos formalmente representados no Parlamento, mas é uma medida abstrata do grau de fragmentação parlamentar. Quanto maior o número de partidos efetivos, mais difícil a formação de maiorias e mais decisivo é o papel dos partidos menores.
Nas eleições de 1998 esse indicador foi de 7,1, em 2014 subiu para 13,4 e nas últimas eleições chegou a inacreditáveis 16,5. Quanto maior o número de partidos, maior o poder de barganha dos pequenos partidos e mais incentivo à criação de mais agremiações. Uma entropia exponencial.
Esse processo é causa relevante da contínua corrosão da nossa situação fiscal. Grupos de interesses particularistas conseguem arrancar concessões que, somadas, acabam por erodir as finanças públicas. Em contrapartida, torna-se extremamente custoso negociar maiorias – especialmente em pautas controversas – indispensáveis para um ajuste fiscal que se baseie em revisão de despesas, e não em aumento de receita.
A situação atual é mais desse mesmo cenário paralisante. O governo Bolsonaro parece ter dificuldades crescentes para arregimentar a maioria necessária à reforma da Previdência. Se tiver de ampliar demasiadamente as concessões táticas que lhe permitam formar maioria, a reforma será diluída e não atingirá os objetivos mínimos pretendidos.
É por essa razão que vejo como inadiável uma reforma política para valer. Não para resolver um impasse imediato, o que seria impraticável, mas para refazer o futuro, sem prejudicar os mandatos atuais, do presidente e dos parlamentares. Uma reforma profunda, mas pontual, indo à causa essencial da fragmentação que está gangrenando a política no Brasil: o sistema eleitoral. É preciso mais do que nunca adotar o voto distrital misto, que barateia eleições e permite amplitude ideológica ao Parlamento, dando voz a minorias relevantes, mas que não obsta a formação de maiorias programáticas.
Que as dificuldades políticas atuais sirvam ao menos para, já nas eleições de 2022, adotarmos um sistema eleitoral baseado nessa reforma, livrando o País da entropia política que o está devorando.
José Serra é senador (PSDB-SP)
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