Vivemos um momento de manifestações, de um lado e de outro,
até com a velha disputa: a minha é maior que a sua. Não sou teórico no assunto,
mas o fato de ter vivido muitas manifestações ao longo de 60 anos me autoriza a
especular sobre elas de modo geral.
Para começar, sei que observadores de fora sempre são vistos
com desconfiança. Há uma constante tensão entre manifestações e os modos de
calcular seu alcance: técnicas aritméticas de contá-las, diferenças entre o que
viram os manifestantes e a PM, os cálculos nunca coincidem. Enfim uma constante
sensação de que os movimentos não foram devidamente reconhecidos.
Falando sobre o falso dilema entre governar com conchavos e
obter o que o governo quer apenas com pressão popular, ouvi de uma leitora que
estava equivocado. Ela parou de ler o texto supondo que condenaria as
manifestações pró-governo. Pena, porque alguns parágrafos adiante descrevia as
condições em que essas manifestações são perfeitamente possíveis: quando há
convergência de propósitos entre manifestantes e governos, um momento em que é
preciso mostrar a demanda social por um tema em debate.
Manifestar-se, para mim, é uma forma de autoexpressão válida
em si. Jamais analiso as manifestações apenas por seu tamanho. Existem outros
critérios decisivos. Até que ponto elas transcendem a pura autoexpressão e
contribuem para a solução real do problema?
Neste último caso, elas são medidas por seu grau de
eficiência. E isso não depende apenas dos manifestantes, mas de como as forças
políticas que eles apoiam vão aproveitar seu impulso positivo.
Tanto nas manifestações pró-governo como nas contrárias a
ele procuro encontrar essa lógica. Um pouco como no futebol: a equipe cria
condições de gol, mas são os atacantes, em geral, que o completam. Nas
manifestações pelas reformas era de esperar que, dentro das instituições, as
aspirações coincidentes fossem levadas adiante.
Bolsonaro deu um passo, parecendo compreender a
complementaridade política-manifestantes: a assinatura de um pacto com o
Congresso e o STF. Acho o pacto inócuo. Não exclui as negociações específicas
para que as pautas de reforma caminhem, o que significa obter de fato os votos
necessários à sua aprovação.
No caso do Coaf nas mãos de Sergio Moro, houve um
curto-circuito entre o que as pessoas pediam nas ruas e alguns políticos do
governo prometiam. A realidade é que os prazos e ritos parlamentares tornariam muito
arriscado devolver o Coaf ao Ministério da Justiça. Era possível perder toda a
reforma do Ministério apenas para salvar um aspecto dela.
Em outro plano, as manifestações pela educação são ainda
defensivas. Trata-se de não perder verbas essenciais para seu funcionamento.
Mas um tema dessa dimensão para o País sempre se alarga quando entra em debate.
Não se trata apenas de verbas, mas da necessidade de manter
a educação no topo da agenda. Nesse caso, cabe uma questão básica: estamos
satisfeitos com a qualidade da educação? Como virar esse jogo?
Manifestantes trazem calor, despertam a esperança de uma
grande ação para valorizar realmente esse tema no Brasil. Mas quem pode
utilizar esse impulso são os grupos políticos.
A oposição apoia o que acontece nas ruas, mas não propõe
ainda uma saída. Os dois ministros da Educação que vi passar pelo Congresso
foram questionados sobre um plano estratégico. Não tinham. Senti que alguns
deputados se contentaram em mostrar que a discussão, da parte do governo, está
limitada ao marxismo cultural e ao método Paulo Freire. Não há ao menos um
esboço do que deve ser feito nessa frente, a partir do olhar da oposição.
São espaços abertos. Assim como o governo, fortalecido com
as manifestações, precisa aprimorar seus métodos de negociação para conseguir
as reformas, a oposição será forçada a pensar o tema educacional com mais
amplitude. E tentar algumas vitórias.
Quando as equipes jogarem com um mínimo de coordenação entre
rua e Parlamento, o ritmo político no Brasil deixará de ser erradio e ineficaz.
A sociedade está dando régua e compasso. Apoiar uma ou outra
manifestação, tirar selfies e louvá-las nas redes e mesmo votar de acordo com o
prometido não basta. É preciso algo mais que demonstrações isoladas.
É possível argumentar que essa sintonia entre ruas e
Parlamentos deveria ser pensada por partidos. Mas a verdade é que eles não
existem como intérpretes e realizadores das aspirações. Em ambos os casos, nas
reformas e na educação, será preciso criar frentes suprapartidárias para responder
com algo mais profundo que um simples tapa nas costas ou um like nas redes
sociais.
Possivelmente ainda encontraremos nas ruas grupos
antidemocráticos nas suas propostas, como o fechamento do Congresso, ou mesmo
na prática, como a violência ou o vandalismo. Essas forças ainda são
minoritárias e insignificantes. Mas o que as alimenta é precisamente a ideia de
que as manifestações não mudam nada.
Se houver sintonia entre instituições e as ruas, resultados
práticos, a tendência é de manifestações cada vez mais pacíficas. E talvez
menos frequentes.
Ser parlamentar com as ruas constantemente cheias é uma
experiência interessante. Não há o que temer, apenas vislumbrar a oportunidade
histórica que não tiveram mandatos em fases de indiferença.
Ali dentro do Parlamento, sozinho ninguém avança. O passo é
descobrir quem está percebendo a mesma realidade ou vivendo a mesma ilusão. Só
a prática vai mostrar.
Tudo isso acontece num momento difícil. Índices de
crescimento baixos, perigo de recessão, gastos nas alturas. O governo depende
de um crédito suplementar de R$ 249 bilhões. Isso dá à palavra experiência um
interessante sotaque chinês da velha maldição: que vivam tempos interessantes.
Artigo publicado no Estadão em 31/05/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário