No início do processo de redemocratização, campanha das
diretas, vi num mesmo palanque em Caruaru dois candidatos que se dispunham a
combater a corrupção: Collor, caçador de marajás, e Lula, que traria ética para
a política. Ambos perderam a batalha.
Não posso dizer que Bolsonaro vá pelo mesmo caminho, pois
cada um tem um roteiro próprio para contradizer o seu discurso. O dele tem um
caráter doméstico. Ele decidiu intervir no Coaf, na Receita Federal e na
Polícia Federal (PF) porque sentiu ameaças à sua família.
Ele próprio revelou que o Fisco fez uma devassa nas finanças
de seu irmão, candidato a prefeito em Miracatu, no Vale do Ribeira. Sua
campanha presidencial foi investigada.
Flávio, filho de Bolsonaro, estava sendo investigado a
partir de dados do Coaf. Toffoli suspendeu as investigações. O presidente
aprovou.
E agora quer mudar três nomes da Receita no Rio e um
delegado da PF. A Receita é apenas uma das pernas do esquema de combate à
corrupção que funcionou na Lava Jato. Talvez seja a mais vulnerável. Tentei
explicar isso a um fiscal, que, por sua vez, descrevia os mecanismos
automatizados e anônimos que indicam a necessidade de investigar o contribuinte.
Não há grande lastro popular no apoio à Receita. De modo
geral, as pessoas a temem, ou talvez a rejeitem inconscientemente. A
Inconfidência Mineira e as lutas contra as taxações coloniais podem ter
contribuído para isso. Nem todos se distanciam para vê-la em suas funções mais
amplas, importantes para toda a sociedade.
A interferência no Porto de Itaguaí, por exemplo, interrompe
um trabalho que dificultava a ação da milícia que domina a área. Pelo porto
saem drogas e entram armas.
Bolsonaro não explicou a razão de sua interferência em
Itaguaí. Mas deveria ser mais cuidadoso num tema que envolve a milícia
diretamente. As investigações em torno do gabinete do então deputado estadual
Flávio Bolsonaro mostram que familiares de milicianos foram empregados ali. O
próprio Fabrício Queiroz parecia ter vínculos com o grupo do Escritório do
Crime, mas jamais apareceram para todos essas inter-relações gabinete-milícia.
O descaminho de Bolsonaro no trato com a autonomia dessas
instituições se dá num momento singular. Outras famílias importantes, do Poder
ao lado, a mulher do ministro Toffoli e a de Gilmar Mendes, também estavam
incomodadas com os dados do Coaf. O lamentável vazamento no caso de Gilmar
acabou contribuindo para criar uma aliança dentro do STF que inclui Alexandre
de Moraes, com sua decisão de suspender investigações.
No Poder do outro lado, a Câmara aprovou um projeto de abuso
de autoridade, de noite e com baixo quórum. É um tema em que se pode chegar a
um acordo. Mas não deveria ser votado assim. Essa história de Rodrigo Maia
decidir que havia quórum é muito subjetiva.
A Lei de Abuso de Autoridade, apesar de ainda estar
indefinido o papel de Bolsonaro nela – pode vetar ou não –, também é parte de
uma ofensiva que o topo dos três Poderes desenvolve contra o sistema de combate
à corrupção. Ilusório pensar que as coisas voltarão a ser como antes da Lava
Jato. Talvez a cúpula dos três Poderes perceba isso. O que parece estar em
curso é uma espécie de freio de arrumação. O objetivo é apenas o de facilitar o
movimento dos políticos e conter investigadores e juízes. Que nível de
resultado sairá desse esforço ainda é uma incógnita.
Bolsonaro enfraquece Sergio Moro ao intervir na Polícia
Federal. As mensagem vazadas da Lava Jato não tiveram efeito demolidor, mas
foram um elemento de estímulo ao freio de arrumação.
De certa forma, todo esse movimento era previsível e a
tensão, às vezes, se concentrava num só tema, como, por exemplo, a prisão após
julgamento em segunda instância. O que é novidade, não tanto para mim, que vi
outros projetos fracassarem, é o comportamento do governo que se diz contra a
corrupção.
Para começar, o próprio partido de Bolsonaro, o PSL, aprovou
o regime de urgência para a Lei de Abuso. Sinal de ambiguidade. O abuso de autoridade,
em termos gerais, existe há décadas. Por que, então, aprovar a lei com tão
pouca gente e discussão?
Juízes e procuradores sentem-se intimidados com o nível de
abstração em que a lei foi redigida. Por que não negociar com eles?
O único tema que alguns governistas problematizaram foi o
uso de algemas. Isso é importante no trato do crime comum, mas insignificante
em termos de luta contra a corrupção. Eles não costumam fugir, muito menos
reagir violentamente à prisão.
Os eventuais vetos que Bolsonaro apresentar à Lei de Abuso
não atenuam o peso de sua investida sobre os órgãos de investigação. Não ficou
clara a razão de ele pedir o afastamento do delegado da PF do Rio. A PF do Rio
contribuiu para as investigações sobre a morte de Marielle Franco. Elas resultaram
na prisão de milicianos.
Bolsonaro alegou que a razão da mudança era a produtividade.
Mas a PF do Rio também atua na Lava Jato, cuja produtividade talvez seja maior
no momento do que em Curitiba ou São Paulo.
Como quase todas as intervenções esbarram em desconforto
familiar ou repressão às milícias, elas significam um retrocesso na maneira
como um presidente se comporta diante da autonomia das instituições.
Ironicamente, um governo que se elegeu tendo como bandeira o combate à
corrupção e com os ventos favoráveis da Lava Jato aniquila as possibilidades de
outra operação eficaz no Brasil.
Quebrou uma das suas pernas, a fiscalização integrada das
transações financeiras, enfim, perde o rumo do dinheiro, bloqueia o caminho
real para investigar corrupção. E não é só Bolsonaro. Há mais presidentes
envolvidos nisso, com destaque para o do STF, que proibiu o uso dos dados do
Coaf.
Uma ação entre famílias.
Artigo publicado no Estadão em 23/08/2019
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