segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

CINCUUM


Monica de Bolle, ÉPOCA
Não entendo nada de futebol apesar de ser flamenguista. Portanto, este não é um artigo sobre o Flamengo, o Mengão campeão, viva o Flamengo! Mas há algo de novo no Flamengo que toca outros temas, em particular a falta do novo na condução econômica e no debate nacional sobre os rumos do país. O novo no Flamengo é, evidentemente, a abertura para ideias diferentes representada pela escolha do técnico, tão criticado no início da trajetória para os dois títulos conquistados no último fim de semana. Arejar as ideias é fundamental em qualquer área, do futebol à economia.
Na economia, estamos bem mal. Não é exagero, ainda que alguns possam querer insistir em relatar melhorias pontuais, a aprovação da reforma da Previdência e outros feitos. Não os desmereço, que fique claro. O problema é outro. Nesta semana esteve no Peterson Institute for International Economics (PIIE) o ministro Paulo Guedes.
Não, não foi aqui que ele deu a declaração sobre o AI-5, mas nem por isso sua fala foi menos espantosa. O PIIE é um dos mais prestigiados institutos de pesquisa do mundo, vencedor há 4 anos seguidos do prêmio Prospect de Melhor Think Tank de Economia. A plateia que participa dos eventos públicos e privados que organizamos é altamente qualificada: embora ela seja composta majoritariamente por economistas, sempre há cientistas políticos, advogados, além de diversos acadêmicos de outras áreas e gestores de políticas públicas. Esperava-se que o ministro fizesse uma apresentação técnica sobre os avanços conquistados e os riscos do ambiente de turbulência política ao redor do país e dentro dele próprio para a economia brasileira.
Em vez disso, Guedes se ateve ao modo associação livre de falar, que é sua característica. A associação livre, quando bem feita, pode dar boas letras de música, boa prosa ou poesia, um monólogo divertido, até. Contudo, não suscitou interesse na plateia habituada a pensamentos bem estruturados e expostos com clareza.
Guedes foi errático, pulou de um tema para outro, divagou e falou bobagens. Ao descrever a agenda futura de reformas, foi repetitivo. Forneceu uma lista de desejos ordenada item por item, em que a alardeada reforma tributária constou como o item de número “cincuum”. Sem explicitar o termo de comparação, repetiu várias vezes que a democracia brasileira é a mais vibrante e que a segurança está melhorando com a queda na taxa de homicídios, colhendo os frutos de ações estaduais e de administrações anteriores. Claro que não houve menção às mortes associadas às ações policiais nas comunidades pobres.
Quase disse que o Brasil é o país mais preocupado com o meio ambiente no mundo — não disse isso exatamente, mas o tom esfuziante ficou evidente. Falou, falou, falou. Quando viu que a hora passava e que ele deveria dar a palavra para a plateia, falou mais um pouco. Foram poucas as perguntas e ele não respondeu a nenhuma, empenhado que estava em seu fluxo de consciência desconexo. Não restou qualquer dúvida de que o ministro gosta muito de ouvir a própria voz.
De tudo isso, o que ficou claro para a plateia?
Em uma brevíssima menção à pobreza, disse que o ideal era dar alguma condição ao pobre e deixá-lo a serviço do mercado, remontando à velhíssima premissa de que pobre é pobre porque não sabe correr atrás do que precisa para ser bem-sucedido. A pobreza para ele não é estrutural nem resultado de um intricado sistema que impede a mobilidade social pois é gerador de desigualdades de oportunidades no ponto de partida. Guedes não entende que o crescimento econômico não é uma panaceia, que não é condição suficiente para nada e talvez não seja sequer condição necessária.
Tenho escrito, com base em uma releitura de Albert O. Hirschman, que o crescimento pode ser fonte de instabilidade política a depender da maneira como afeta a dinâmica social e a mobilidade de segmentos da população. O pensamento econômico moderno abandonou as teses de Guedes sobre pobreza e crescimento há tempos. Também abandonou a ideia de Estado mínimo por ele apregoada. Guedes é inequivocamente vítima de um problema que assola o Brasil em várias esferas: o enrijecimento intelectual e a incapacidade de interagir com o que é novo e diferente. Como tantas profissões, é adepto do clubismo na troca de ideias. Fala para si e para os que querem ouvi-lo, sem capturar aqueles que operam em frequências distintas. Trata-se de um retrato da poeira que assola o Brasil atual.
Cincuum. Vai Flamengo! Levanta a taça do Brasileirão com toda a mescla de criatividade e de cores das bandeiras do Brasil e de Portugal. Aproveita para assoprar um pouquinho da poeira. O Brasil precisa.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins.
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