O Brasil enfrenta hoje dois desafios de natureza econômica e
política. O primeiro refere-se ao modelo de desenvolvimento econômico que
garanta o crescimento anual do produto interno bruto (PIB) acima de 3,5%. O
modelo de substituição de importações e protecionismo comercial e de
crescimento para dentro, em vigor há sete décadas, esgotou-se em função de seu
próprio sucesso. O desafio atual implica escolher modelo de crescimento para
fora conjugado com abertura comercial.
O desafio político implica definir os interesses
prioritários do País no concerto das nações, à luz do neoisolacionismo
norte-americano, da emergência da China como potência econômica, política,
militar e de ambições imperiais, o esforço da Federação Russa de manter seu
poderio na Europa do Leste e no Mediterrâneo Oriental. No momento, a
diplomacia, a academia e a mídia têm elaborado cenários variados que buscam
responder reativamente à pergunta de qual papel cabe ao Brasil diante dos
conflitos, abertos ou latentes, entre esses grandes polos de poder mundial.
Nestas notas sugiro uma inversão de perspectiva. Busco
sugerir uma política externa brasileira definida estrategicamente em função de
suas fortalezas atuais e potenciais para então, como consequência, explicitar
planos de ação concretos nas suas relações com os Estados Unidos da América, a
China continental, a Rússia e outros polos regionais de poder como Índia,
Indonésia e África subsaariana. Excluo intencionalmente a América do Sul desta
enumeração por acreditar que este subcontinente, sob a liderança brasileira,
deve constituir o campo de ação propositiva da nova política externa do País e
não se sujeitar a ser meramente alvo de iniciativas políticas e econômicas
vindas de fora da região.
Não se trata de inventar a roda. O Brasil pode desenhar um
plano estratégico semelhante ao que Chu En-lai desenhou para a China com o
objetivo de transformá-la numa grande potência combinando o crescimento
fronteiras adentro com uma adequada inserção internacional. A partir de 1950 o
Brasil também havia decidido se transformar numa potência combinando o
crescimento fronteiras adentro com um protecionismo comercial, autárquico e
fortemente subsidiado pelo Tesouro Nacional. Entre os séculos 20 e 21 a China
tomou carona na onda de globalização e rapidamente colocou a indústria chinesa
se integrando às cadeias globais de valor. O Brasil, diferentemente, ensaiou um
tímido programa de inserção de sua indústria nas cadeias regionais de seus
sócios do Mercosul e manteve uma visão autárquica e protecionista em relação ao
resto do mundo, seja o desenvolvido, seja o em desenvolvimento.
Segundo a revista The Economist, a globalização está sendo
substituída pela “slowbalisation”, em que a integração de cadeias regionais de
valor ganham uma sobrevida. É nesse contexto que se abre uma grande
oportunidade para o Brasil almejar transformar-se num polo regional de
crescimento econômico e de importância política, por meio de um ambicioso
programa de revisão conceitual dos objetivos integracionistas do Mercosul,
acoplado, também, a um igualmente ambicioso programa de negociação com a
Aliança do Pacífico, com a Bolívia e o Equador e, quando possível, com a
Venezuela.
Considerando que as barreiras tarifárias já quase se
extinguiram nesse grupo alargado de países, os principais objetivos das
negociações comerciais devem estar concentrados nos campos das restrições não
tarifárias, dos obstáculos burocráticos no comércio transfronteiriço e no vasto
campo das políticas regulatórias que tornam viável o melhor aproveitamento das
estruturas logísticas subcontinentais, das normas técnicas até os diversos
modais de transporte transfronteiras. A geografia subcontinental oferece uma
base sólida sobre a qual repousaria essa nova rede de acordos comerciais.
Em primeiríssimo lugar, a produção agropecuária e seu
relevante papel na conservação de uma política mundial de segurança alimentar.
Em segundo lugar, as potencialidades já bem quantificadas da
capacidade de produção e exportação de petróleo, gás natural e biocombustíveis.
Em terceiro lugar, o valor e o volume crescentes de produção
de energias renováveis e limpas (água, sol e vento), ambos favorecendo a sustentabilidade
das produções minerais e agrícolas e seu comércio internacional.
Finalmente, em quarto lugar, o enorme potencial atrativo
para os capitais públicos e privados internacionais investirem na
infraestrutura sub-regional que será requerida para dar vazão ao crescimento do
comércio internacional, particularmente em direção aos mercados emergentes da
Ásia do Leste e do Sudeste.
O potencial a que acabo de me referir no parágrafo
precedente se encontra geograficamente situado na vertente atlântica da América
do Sul. As terras férteis, as bacias hidrográficas com vocação exportadora, os
grandes planaltos centrais com topografias adequadas ao uso de tratores e
implementos agrícolas de última geração tecnológica, a abundância de subclimas
que permitem que as terras tropicais, subtropicais ou temperadas produzam
enorme variedade de grãos, frutas e pecuária de corte, todos são fatores que,
bem aproveitados, dão suporte a um ambicioso programa subcontinental de
produção de bens e serviços destinados aos mercados continentais ou
extracontinentais.
Do ponto de vista geopolítico, parece promissor que as duas
maiores economias atlânticas da América do Sul, Brasil e Argentina, tomem a si
a decisão de aprofundar a já existente aliança estratégica e juntas lancem um
programa de integração regional ofensivo, e não defensivo, aberto, e não
protecionista, amigável para os capitais disponíveis num mundo desenvolvido,
mas em encolhimento estrutural, fazendo com que o conceito de
latino-americanidade, tão decantado em prosa e verso pelos nossos intelectuais
ibéricos, se liberte da retórica poética e invada o universo das realidades
políticas.
* Ex-embaixador do Brasil na Argentina
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