O amor é sempre um ato de compensação, a gente ama no outro
aquilo que faz falta em nós. Quando você não consegue fazer essa operação, das
duas uma. Ou está sofrendo de imensa megalomania, o sentimento de que não
precisa amar ninguém, porque as virtudes do outro não lhe fazem falta; ou você
perdeu completamente o sentido da existência do outro, o que ele significa para
a organização do mundo e da humanidade, para você mesmo. Há uma terceira
hipótese, quando não existem semelhantes e, portanto, não se pode saber o que
nos falta, se é que nos falta alguma coisa. Mas, essa hipótese, só em Deus pode
ser aplicada.
Foi o homem que ensinou Deus a amar, assim como aprendemos
com ele a criar. Ele devia estar sofrendo de uma grande melancolia, provocada
pela solidão, quando decidiu criar um animal à sua imagem e semelhança. Em
geral, quando se comete um erro desse, dificilmente recuperamos a clareza das
diferenças que havia antes. O amor amolece o juízo, a capacidade de conhecer e
distinguir. Mas, para melhor entender o que fizera, Deus tinha que passar por
essa experiência. E, como não havia outros semelhantes, com os quais pudesse se
identificar, foi ao ser humano mesmo que ele amou.
Ao longo de nossa história, sempre nos orgulhamos dessa
escolha, a escolha de ele nos haver criado. Deus estava precisando de nós, não
interessa por quê. E, todo mundo sabe, sempre que somos destacados por pessoas
de grande gabarito, acabamos por nos identificar a elas. Como se nossos pais
não fossem os responsáveis por nossas virtudes, mas nós pelas deles. Só nos
faltava um talento, para estarmos mais perto dos seus — o talento da criação.
E, desse, o único exemplo que tínhamos era o de Deus. Vendo como ele fazia,
inventamos então a oração e o baile, a poesia e o cinema, os patins e o carro,
a ciência e a tecnologia, todas as formas de melhor intervir no mundo, fazê-lo
melhor do que o recebemos. Sabíamos que, nisso, ele era um craque; mas
queríamos ser craques também.
Deus se admirou de nós, do que havia criado quando nos
criou. A única providência que tomou, para se proteger de nossos eventuais
enganos e exageros, foi se unir com a Natureza, fazer uma aliança com essa
nossa caprichosa irmã única para, de vez em quando, nos chamar a atenção,
impedir que fôssemos longe demais em nossas maluquices e desvarios.
A Natureza propôs então utilizar seus vulcões e tsunamis,
para quando a gente exagerasse. Para nos fazer mal e nos meter medo. Mais
perdidos ficaríamos se, em vez apenas dos desastres mais pomposos, sofrêssemos
também o ataque de vírus, inimigos quase invisíveis, que podiam nos levar ao
descontrole da paranoia. Sem saber a quem combatiam, os seres humanos não
saberiam enfrentar tão mínimos guerreiros. No momento oportuno, eles nos
impediriam de assolar os continentes, de irmos longe demais na produção da
indústria que sujou o planeta, nas invenções disparatadas que haviam destruído
o clima, as estações do ano, o ambiente e as florestas, com tanto carbono e
combustível fóssil a escurecer o céu. E era ali que Deus morava, onde repousava
de tanto trabalho que lhe havia dado botar o universo em ordem.
Curiosamente, é a presença de um vírus que está limpando os
céus da Terra, graças à interrupção temporária de tudo isso que nos levava à
escuridão. Mas ele está matando também milhares de inocentes (tomara que não
chegue a milhões, muitos milhões como na Gripe Espanhola de 1918), gente que
não tem nada a ver com essa guerra fratricida da Natureza contra nós.
É preciso que reencontremos o caminho original da
humanidade, cujos únicos específicos são a criação e o amor. Sendo o amor a
coisa mais forte que se podia inventar. É o amor que pode nos proteger contra o
ciúme que se tem de um ministro que amamos, um que aparece mais porque, por sua
ciência e habilidade, é dele a hora de aparecer. Que não nos deixa ir contra a
gigantesca maioria da população, que já compreendeu a necessidade do isolamento
social. Que deve fazer evitar a afirmação de besteiras farmacêuticas, sobre o
que não entendemos nada e confiar em quem entende. Que obriga muita gente a
deixar a pressão familiar de lado, a ir cuidar dos três filhos para que não
fiquem doentes e não nos adoeçam com suas ideias primitivas.
Enfim, é o amor que nos faz recuar e ficar um pouco atrás,
num plano secundário mas também decisivo, quando sabemos de nossa ignorância e
que não temos como estar na vanguarda, dando palpites que não prestam. É melhor
e mais inteligente ficar atrás, aderir à quarentena, a melhor criação da crise,
quando sabemos que não temos como estar à frente. Nesse caso, é sempre melhor
não ir trabalhar, mesmo que o que nos espera seja um palácio, e ver pela
televisão o que anda acontecendo.
Fique em casa, Jair!


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