As Constituições determinam o papel dos atores políticos.
Vejamos como as nossas definiram o das Forças Armadas.
1824: sem papel político e policial.
Art. 47: “A Força Militar é essencialmente obediente; jamais
se poderá reunir, sem que lhe seja ordenado pela autoridade legítima”.
Art. 48: “Ao Poder Executivo compete privativamente empregar
a Força Armada de Mar e Terra, como bem lhe parecer conveniente à segurança e
defesa do Império”.
1891: com papel político e policial.
Art. 14: “As forças de terra e mar são instituições nacionais
permanentes, destinadas à defesa da pátria no exterior e à manutenção das leis
no interior. A força armada é essencialmente obediente, dentro dos limites da
lei, aos seus superiores hierárquicos, e obrigada a sustentar as instituições
constitucionais”.
1934: com papel político e policial.
Art. 162: como em 1891. Acrescenta nas atribuições: “defesa
da ordem e da lei”.
1937: sem papel político e policial.
Art. 161: “As forças armadas são instituições nacionais
permanentes, organizadas sobre a base da disciplina e da fiel obediência à
autoridade do presidente da República”.
1946: papel político e policial.
Art. 176: “As FA […] são instituições nacionais permanentes
[…] sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos limites da
lei”.
Art. 177: “Destinam-se as FA a defender a pátria e a
garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.
1967: papel político e policial.
Art. 92: repete 1946, trocando “poderes constitucionais” por “poderes
constituídos”.
1988: papel político e policial.
Art. 142: “[como em 1946] organizadas […] sob a autoridade
suprema do PR, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes
constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
Foi longo e difícil o debate sobre este artigo, feito sob
forte pressão do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Mas a
disputa deu-se em torno da expressão “garantia da lei e da ordem”. Segundo os
críticos, ela podia dar margem a golpismo. Este dispositivo, no entanto, estava
presente, com pequenas nuanças de redação, desde a Constituição de 1891,
passando pelas de 1934, 1946 e 1967.
Hoje, creio que a atribuição mais grave é colocar as Forças
Armadas como garantidoras dos poderes constitucionais, presente desde 1891.
Houve uma reviravolta na interpretação desse papel. Em 1891, ironicamente, a
Constituição proibia o que o Exército acabara de fazer: desrespeitar as
instituições constitucionais. Mesmo assim, deixou uma saída intervencionista ao
acrescentar “dentro dos limites da lei”. Juarez Távora não viu na limitação
qualquer obstáculo à revolta dos tenentes: eles sabiam definir o que era ou não
legal.
Hoje, a garantia dos poderes constitucionais tornou-se a
justificativa preferida pelas FA para definir seu papel e justificar sua
intervenção. A mais recente manifestação desta postura foi o alerta ameaçador
do general Augusto Heleno a propósito de eventual apreensão do celular do
presidente. A apreensão, se levada a efeito, seria uma tentativa de
“comprometer a harmonia entre os poderes”, com “consequências imprevisíveis
para a estabilidade nacional”. Um dispositivo que, inicialmente, visava a
impedir intervenção, passou a ser justificativa de intervenção. A Constituição
imperial dizia no artigo 98: “O Poder Moderador […] é delegado privativamente ao
Imperador […] para que vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e
harmonia dos mais poderes políticos”. Temos uma República julgada incapaz de se
autogovernar, sujeita à tutela de um novo Poder Moderador.
*José Murilo de Cavalho é historiador
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