Se nos disserem daqui a algum tempo que no dia em que o
Brasil contava 52 mil mortos por um vírus violento a prioridade do governo era
proteger infratores do trânsito, nós tomaremos um susto. Somos testemunhas do
inacreditável. Na última terça-feira, o governo mobilizou sua base parlamentar,
agora engordada com o centrão, para aprovar a sua menina dos olhos: os
motoristas terão mais chance de cometer infrações de trânsito, antes de chegar
ao ponto de perder a habilitação. No dia seguinte, o secretário de Vigilância
Sanitária, usou 184 palavras para comunicar uma notícia curta e dura: que a
curva dos infectados e mortos ainda cresce no Brasil.
Naquela mesma quarta-feira, em que morreram 1.103
brasileiros pela covid-19, o presidente e seu filho e divulgador, conhecido
pela alcunha de Carluxo, foram à Polícia Federal. Aquela que está investigando
o presidente da suspeita de intervir nela mesma. Ao lado de um receptivo
diretor-geral Rolando de Souza, o presidente se exibiu dando tiros com várias
armas, o que pode ser conferido no vídeo postado nesse jornal pela competente
Bela Megale. Quem olhar no futuro essa cena, e for informado do contexto do
país naquele dia, se perguntará: que presidente é este? Teremos dificuldade de
explicar.
No tempo de hoje vamos vivendo o insólito. Um ex-ministro da
Educação, investigado por racismo e por ameaça às instituições democráticas,
foi indicado para diretor executivo do Banco Mundial. A instituição passou os
últimos anos atualizando seus valores para fugir exatamente do que o ministro
leva na bagagem das suas convicções.
No futuro duvidaremos de nós quando relatarmos aos mais
novos que tudo estava fora do lugar no mesmo momento. O ministro do Meio
Ambiente é aliado de desmatadores, o presidente da Fundação Palmares ofende
Zumbi dos Palmares, a ministra da Mulher acredita que mulheres devem se
submeter aos maridos, o ministro das Relações Exteriores destrata países com os
quais o Brasil tem relações e alimenta teorias conspiratórias sobre as
organizações multilaterais, o Ministério da Saúde enfrenta duas demissões e uma
longa interinidade no meio de uma pandemia, um militar chefia a Casa Civil, e o
ministro da Justiça acha que o presidente é um profeta.
Será difícil explicar o contorcionismo dos últimos dias em
torno do caso Queiroz. Sumido há muito tempo, ele foi encontrado na casa do
advogado que defendia Flávio Bolsonaro e o próprio presidente. Frederick Wassef
é realmente um fenômeno. Inicialmente ele negou que conhecesse seu próprio
hóspede. Depois disse à “Veja” que escondeu Queiroz para proteger o presidente
da República. O ex-assessor poderia ser morto e o presidente, responsabilizado.
Quem no futuro não entender essa rocambolesca história não deve se culpar. Não
será a única estranheza do caso. A Justiça do Rio deu ao filho mais velho do
presidente o direito a foro por prerrogativa de função que ele já não exerce.
Inventou a prerrogativa de ex. Um detalhe talvez comprometa mais ainda a
verossimilhança dos eventos: o governo foi eleito dizendo que combateria a
corrupção.
O brasileiro vive dois grandes tormentos: uma pandemia e a
pior crise econômica. Nesse quadro o presidente propôs aos ministros
“escancarar”. A verdade sobre a pandemia? Não. A necessidade de proteger a
população? Não. As medidas para socorrer pessoas e empresas contra a crise
econômica? Não. Ele propôs escancarar a liberação das armas.
Mais armas nas mãos das pessoas, e menos punição para os
delitos de trânsito. Eis a solução para todos os nossos problemas, da covid-19
à recessão econômica.
Os desatinos diários, os berros, as palavras chulas, a falta
de demonstração de sentimento em relação às vítimas da tragédia tudo se tornou
tão rotineiro que o país foi se acostumando. Por isso, só daqui a muito tempo
teremos dimensão da ignomínia vivida pelos brasileiros nesse triste momento da
nossa história. Nos últimos dias o presidente não foi a qualquer manifestação
antidemocrática, não ameaçou chamar as Forças Armadas contra o Supremo, não
mandou jornalistas calarem a boca. Dizem que daqui para frente tudo vai ser
diferente. Que ele vai se comportar para escapar dos inquéritos do Supremo e
vencer a eleição para um segundo mandato presidencial. Contando, ninguém
acredita.
(COM MARCELO LOUREIRO)
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