quinta-feira, 25 de junho de 2020

O INVESTIGADO

Merval Pereira, O GLOBO

A falta de noção do que seja público ou privado marca a gestão do presidente Bolsonaro e de muitos de seus assessores diretos, como aquele coronel que deu uma coletiva usando um broche na lapela com uma caveira cravada por um espada, símbolo do Comando das Forças Especiais do Exército. Ou de seu chefe, o ministro de facto da Saúde General Eduardo Pazuello que, ao identificar-se como militar da ativa, pontificou: “Cumpro ordens. Missão dada é missão cumprida”.

Foi assim que o uso da cloroquina foi estimulado no serviço público de saúde mesmo depois de não indicado por organizações médicas internacionais, ou o número de mortos pela pandemia foi manipulado.

A mais recente demonstração de que o presidente da República tem uma visão distorcida de sua autoridade está no anúncio de que a Advocacia-Geral da União (AGU) vai recorrer da decisão da Justiça Federal de exigir que Bolsonaro use máscara em espaços públicos no Distrito Federal, obedecendo a uma lei local. A alegação é “preservar a independência e a harmonia entre os Poderes”.

Coloca-se assim o presidente acima dos demais cidadãos que residem no Distrito Federal, como se tivesse prerrogativas além das que lhe concede a situação temporária de ser presidente da República. Às vezes, não tem nem mesmo os mesmos direitos, como no caso em que a Justiça o obrigou a revelar seus exames médicos, a bem da informação completa ao público. Como presidente da República, Bolsonaro não tem o direito de desrespeitar as leis, nem deveria ter sido poupado pelo governador Ibaneis Rocha da multa a que todos os que circulam sem máscara na cidade estão sujeitos.

A decisão tem ainda uma exemplar demonstração do que deve ser uma República. Quem impetrou o pedido foi um advogado, em uma ação civil pública, e o juiz Renato Borelli definiu como “desrespeitoso” o ato de andar em público na pandemia sem proteção “colocando em risco a saúde de outras pessoas”, expondo-as “à propagação de enfermidade que tem causado comoção nacional”.

Por falar em comoção nacional, no dia em que o país alcançou o triste recorde de mais de 50 mil mortes, deixando para trás o Reino Unido e tornando-se potencial candidato a superar os Estados Unidos no número de mortes, o presidente Bolsonaro foi ao Rio para participar do funeral de um paraquedista que morrera durante um treinamento.

Morte que provocou justa comoção na comunidade militar da qual Bolsonaro faz parte, como ex-paraquedista do 8 Grupo de Artilharia de Campanha. Nenhum gesto institucional, porém, foi feito pelo presidente diante do morticínio provocado pela Covid-19.

Essa permanente exigência de singularidade diante da lei fez com que ele se recusasse, em tese, a entregar seu celular se requisitado pelo Supremo nas investigações sobre interferência na Polícia Federal, para proteger sua família e amigos ( leia-se Flavio, o filho, Queiroz, o amigo) em que aparece como investigado, não testemunha. É também nesse inquérito que surge agora um novo empecilho.

O ministro Celso de Mello, relator do inquérito do STF, está estudando se Bolsonaro pode responder às perguntas da Polícia Federal por escrito. Essa não deveria ser nem mesmo uma questão, pois o próprio ministro Celso de Mello já deixou claro que, no seu entendimento, essa prerrogativa se aplica somente quando essas autoridades ( presidente, vice-presidente, deputados e senadores) estiverem na condição de vítimas ou testemunhas, o que não é o caso de Bolsonaro.

O presidente da República é formalmente investigado no inquérito. “Com efeito, aqueles que figuram como investigados (inquérito) ou como réus (processo penal), em procedimentos instaurados ou em curso perante o Supremo Tribunal Federal, como perante qualquer outro Juízo, não dispõem da prerrogativa instituída pelo art. 221 do CPP, eis que essa norma legal – insista-se – somente se aplica às autoridades que ostentem a condição formal de testemunha ou de vítima”.

Nessa condição, deveria depor na sede da Policia Federal, como fez o ex-ministro Sergio Moro, outro investigado no inquérito. Provavelmente, para não criar atritos entre o Judiciário e o Executivo, a decisão deve ser um depoimento pessoal no local e hora em que o presidente escolher. Um detalhe insignificante aparentemente, mas é assim que as determinações legais e as instituições vão se apequenando diante do autoritarismo do líder temporário do Executivo. Bolsonaro já disse: Eu sou a Constituição”

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