É fácil perceber onde está a única pedra na bota do capitão que
o faz sair do sério. Até outro dia andava lépido, fagueiro e lampeiro, descendo
a ripa no Congresso e
no Supremo, despejando
impropérios a torto e a direito e debochando dos mortos na pandemia,
cujo número tentou esconder pelo incômodo à imagem de seu governo. Não tinha um
dia em que não desferisse torpedos aos opositores e ameaças a adversários reais
ou fictícios, como os comunistas que, segundo ele, não vão sossegar enquanto
não destruírem a democracia e implantarem uma ditadura. Ora, quem fala...
Mas bastou engaiolarem o Queiroz para
o capitão, inicialmente, se esconder. E depois aparecer, primeiro em forma de
autômato naquela live de despedida do Weintraub.
Parecia estar em Marte, com o olhar fixo, a expressão de completo alheamento.
Demorou a entender, já quase no final, o pedido ridículo e patético do
“abracinho”. Bem depois, o capitão apareceu irreconhecível, piando fino e
desafinado no pronunciamento em que finalmente quebrou o silêncio e apresentou
sua versão canhestra sobre a prisão do ex-assessor do filho Flávio. Nunca mais
parou pra falar com os apoiadores na entrada do Alvorada. Passa batido. Em
Brasília, como vem ocorrendo todo fim de semana, houve novas manifestações
contra e a favor do governo neste domingo. Pergunta se ele deu as caras por lá.
Nem tchuns. Preferiu passar o domingo no Rio de Janeiro.
Cadê o capitão que trovejava a cada encontro com apoiadores
e jornalistas? Onde foi parar o machão que ia pra rua sem máscara nem medo das
críticas por afrontar o coronavírus,
o STF, o Congresso Nacional e quem mais que se colocasse à sua frente? Onde
esconderam a língua desaforada dele?
A língua de Bolsonaro está escondida na cela de Queiroz
Todo mundo sabe onde ela está: naquela cela em que Fabrício
Queiroz está preso. Bolsonaro sabe que o ex-assessor do filho é uma
bomba-relógio que pode explodir no instante em que cair na real e perceber que
não passa de uma figura descartável no jogo de interesses da famiglia.
Fragilizado com a prisão, choroso e preocupado com o futuro de sua própria
família, Queiroz pode aceitar fazer uma delação premiada, dar com a língua nos
dentes e por abaixo o frágil esquema de sustentação da imagem do incorruptível
e do condutor da “nova política” com que Bolsonaro amealhou o descontentamento
com a corrupção petista e conseguiu os votos que o levaram ao Palácio do
Planalto.
Com todas as letras: Bolsonaro está se borrando de medo de
Queiroz, que neste momento é o principal motivo de suas insônias e dores de
cabeça. Por isso, passou a semana piando fino. Porque Queiroz, pelas ligações
íntimas com a família via Flávio Bolsonaro, sabe demais. É um arquivo de
dinamite, e que precisa urgentemente ser neutralizado. Mas como a inteligência
da família – mesmo para o crime – é muito curta, as falcatruas na assembleia
legislativa do Rio de Janeiro e no próprio gabinete de Bolsonaro na Câmara,
onde acolheu indicados pelo ex-assessor, podem vir a público e ajudar a ejetar
o capitão daquela cadeira no Palácio do Planalto. Estavam tão confiantes no
próprio poder que foram esconder Queiroz justamente na casa do advogado do
presidente da república. A mutreta deixou o rabo de fora.
Deus e o diabo escrevem por linhas tortas
Mesmo quem têm memória curta há de se lembrar que Bolsonaro
sustentou o apoio a Weintraub todas as vezes em que se levantou a hipótese de
sua demissão. A fidelidade canina do ex-ministro da Educação ao chefe
justificava sua permanência, mesmo à custa da mais sórdida sabujice. Alguém
deve ter-lhe cochichado ao ouvido que daria um golpe de mestre substituindo o
“Já Vai Tarde” e dando a ele um prêmio de consolação – uma sinecura fora do
Brasil, onde inclusive sairia dos holofotes do STF, onde responde a processo
por envolvimento no inquérito das fake news. O diabo é que não apenas Deus, mas
também o Diabo, escreve por linhas tortas. No mesmo dia da saída de Wintraub –
na verdade, sua fuga para os Estados Unidos - o diabo mexeu os pauzinhos e
Queiroz foi parar no xilindró, abrindo manchetes em todos os jornais e
telejornais do mundo. Correu a notícia que naquela noite William Bonner iria
apresentar o JN de chinelão de dedo, usando bermudas e entornando cachaça com
catuaba. Em síntese: a jogada da demissão de Weintraub não colou porque... o
diabo é quem confia no Diabo!
Cada vez mais isolado, o capitão não parece contar com o
sonhado apoio das Forças Armadas, que já lhe enviaram vários
recados, alguns bem claros, outros cifrados, de que não estão dispostas a jogar
fora a imagem que a muito custo conseguiram recuperar desde que saíram de cena
em 1985, quando acabou o regime militar. Claro que aquele núcleo duro – General
Heleno à frente – ainda o apoia, mesmo sem grande convicção nem grandes
esperanças. Mas uma andorinha só não faz verão. Nem garante apoio ao capitão.
A chapa está esquentando
Com os ministros do STF em seus calcanhares, seja no
inquérito das fake
news que avança velozmente em direção aos seus mais fiéis
apoiadores e aos gabinetes dos filhos e no outro, que apura os ataques ao STF e
ao Congresso Nacional – que contaram com participação aberta de Bolsonaro – a
chapa dele está esquentando em alta velocidade. Agora, com a possibilidade de
Fabrício Queiroz entregar a rapadura, o capitão anda com a crista cada vez mais
baixa. Colocar no lugar da atrapalhada Regina Duarte o jovem extremista de
direita e ex-ator de Malhação Mário Frias na Cultura para encobrir a bomba
Queiroz não esfriou e ainda esquentou ainda mais o panorama. Se ninguém acreditava
em Regina, que é Regina, como a classe artística vai acreditar num Frias
qualquer para comandar uma pasta estratégica em qualquer governo que se leve a
sério?
Desde a posse, Bolsonaro vem revelando uma tendência escancarada a um governo de força, a partir “de uma concepção de estado centralizada e vertical compartilhada por alguns generais que o cercam”, como apontou em artigo recente o colunista Luiz Carlos Azedo, do Correio Braziliense. O problema é que qualquer governo de força se respalda na ausência dos poderes legislativo e judiciário, enfeixados nas mãos do ditador. Bolsonaro é, por natureza, um ditador. Mas é um ditador sem ditadura. Seus apoiadores, nos ataques virtuais e reais aos dois outros poderes, apenas verbalizam o que anda pelos desejos do capitão. Em “O Espírito das Leis”, Montesquieu (1689-1755) escreveu que a democracia se assenta na virtude, a monarquia na honra e o despotismo no medo. Como Bolsonaro só acredita no medo – basta lembrar sua obsessão pelo armamentismo – só se pode esperar dele o despotismo. Só que anda difícil dar um golpe e centralizar o poder. Até porque aqueles malucos de verde-e-amarelo que vão pra rua gritar pela volta do regime militar com Bolsonaro não garantem o sucesso de golpe algum. E tem um tal de Fabrício Queiroz, que, apesar de doente, fala.
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