quarta-feira, 26 de agosto de 2020

ANATOMIA DA CENSURA

Editorial Folha de S.Paulo
Nos últimos anos, o Brasil vem conhecendo tentativas lamentáveis de censura, encampadas por autoridades dos três Poderes, a produções artísticas e culturais.
Recorde-se, por exemplo, a proibição, determinada em 2017 por um juiz de Jundiaí (SP), de peça em que Jesus era transposto para os dias atuais como uma transexual.
Mais recentemente, o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, investiu de forma grotesca contra uma publicação em quadrinhos que continha, na capa, a imagem de dois rapazes se beijando.
Viu-se ainda, no ano passado, a suspensão de exposição de charges políticas na Câmara Municipal de Porto Alegre, a mando da presidente da Casa, Mônica Leal (PP).
Agora, os deputados do Distrito Federal se empenham em alcançar um novo patamar em matéria de obscurantismo. Tramita na Câmara Legislativa, já tendo sido aprovado em primeiro turno, projeto de lei que proíbe exposições artísticas e culturais que, conforme o texto, apresentem nudez ou teor pornográfico ou que atentem contra símbolos religiosos nos espaços públicos de Brasília.
De autoria do presidente da Casa, Rafael Prudente (MDB), o diploma estabelece que o teor pornográfico pode ser caracterizado por fotografias, textos, desenhos, pinturas e filmes que exponham o ato sexual e a performance com atores nus, os quais, segundo a argumentação, contrariam “valores arraigados da sociedade brasileira”.
Trata-se, como se vê, de oficializar a censura prévia. A fim de justificá-la, o projeto confunde, de forma deliberada, a realização de atos obscenos em locais públicos, passíveis de punição conforme o Código Penal, com manifestações artísticas que os contenham, as quais são protegidas pela Constituição.
Sabiamente, a Carta de 1988 retirou do Estado a possibilidade de determinar o que os cidadãos podem ou não dizer, escrever, ler, assistir e encenar, inscrevendo os bens da cultura e do entretenimento no território da livre expressão.
Ao poder público compete, no máximo, estabelecer classificações etárias para as atividades e, ainda assim, apenas “para efeito indicativo”, isto é, como simples sugestão.
Cabe aos que porventura se sentirem incomodados com o conteúdo de determinadas obras o direito de ignorá-las, criticá-las ou, até mesmo, boicotá-las.
Intolerável, numa democracia, é o impulso de proibi-las, como o manifestado pelos deputados distritais. Assim, só se pode esperar que, a partir da votação em segundo turno do projeto, eles abandonem essa senda autoritária.
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