A ausência de futuro parece já ter começado. Para todos os
lados que a gente decida olhar o que se vê não é bom. Desemprego sem
precedentes. Crise climática. Feminicídio em números históricos. Genocídio da
população negra periférica escalonando. Pandemia. Só que existem aquelas e
aqueles entre nós que já passaram por fins de mundo antes. E sobreviveram.
Os descendentes dos povos escravizados e dos povos
originários, as mulheres e os LGBTQ: já houve genocídios e pandemias antes – e
renascimentos. Talvez essa seja, portanto, a hora de escutar o que as pessoas
que insistem em existir têm a ensinar sobre sobrevivência em tempos brutos.
Marina Silva se define como negra e ambientalista. Tem
sangue indígena, nasceu em um seringal no Acre, teve 10 irmãos e sobreviveu a
três hepatites, cinco malárias, uma contaminação de mercúrio e uma
leishmaniose. Sua história, se fosse contada como ficção, seria inverossímil.
Mas a diferença entre ficção e realidade é que a ficção precisa fazer sentido,
e a realidade não.
A jornada de Marina não faz sentido. Porque não há sentido
em ver uma epidemia trazida pelo homem branco levar o tio que te criou, sua mãe
e duas irmãs. Não faz sentido ter que assistir sua casa e suas coisas serem
incendiadas pela defesa civil. Não faz sentido ser criança e ter de trabalhar.
Só que a vida pode mudar na velocidade com que lemos um
cartaz displicentemente pregado na porta de uma igreja. O cartaz que mudou a
vida de Marina Silva quando ela se preparava para ser freira falava de uma
reunião de sindicalistas em Rio Branco, capital do Acre, e levou a garota que
estava quase se ordenando até o seringueiro e sindicalista Chico Mendes – um
encontro que mudaria completamente o curso do rio da sua vida.
Marina então desiste de ser freira, começa uma vida de
estudos, se forma em história na Universidade Federal do Acre, elege-se
vereadora, depois deputada, é indicada como ministra do meio ambiente por Lula
e se candidata a presidente da república em três eleições consecutivas. Na
segunda delas vê sua candidatura derreter: começa a campanha com quase 17% de
intenção de votos e termina com 1%. Os motivos são especulados: desde 2014 tem
sido criticada por fazer alianças políticas bastante questionáveis – mas, se
eliminarmos da política aqueles que fizeram alianças questionáveis, sobram só
móveis e utensílios em Brasília. Então não pode ser isso.
Outras explicações dizem respeito à rejeição por ser
evangélica, e essa desaparece se pensarmos na eleição do atual mandatário. Há
os que acreditam que ela é tratada de forma injusta pela imprensa, e há aí boa
margem para debate porque Marina aparece bastante quando fracassa, mas nem
tanto quando brilha.
Você sabia, por exemplo, que ela recebeu o maior prêmio da
ONU na área Ambiental, o Champions of the Earth? Ou que é renomada mundialmente
por sua luta ambientalista e foi escolhida pelo The Guardian como uma das 50
pessoas que podem salvar o planeta? Mas certamente sabe que, por ser evangélica
da Assembleia de Deus, ela se opõe ao aborto e que deu as mãos a Aécio Neves
contra Dilma Rousseff em 2014.
A carta da religião também tem espaço para um debate maior,
até porque não existe apenas uma forma de ser evangélico, assim como não existe
apenas uma forma de ser católico. São católicos, por exemplo, o governador de
São Paulo João Doria, que pensou em alimentar morador de rua com ração e
dispersou a população da Cracolândia com bombas e demolições em uma operação
realizada em 2017, e o padre Julio Lancellotti, que faz um incansável trabalho
de acolhimento com a população de rua da capital paulista. Existe, inclusive,
uma bancada evangélica de esquerda que defende, entre outras coisas, o estado
laico e o direito ao aborto. Assim, do mesmo jeito que ser católico não define
uma pessoa, ser evangélico também não deveria.
Então por que Marina é tão rejeitada?
Nessa entrevista talvez você encontre pistas, mas, mais do
que isso, talvez dispa-se de algumas certezas que tinha a respeito dela. Aos 62
anos, Marina e sua fala mansa levam a gente ao interior da floresta onde
nasceu, passam pelo convento onde quase se ordenou freira e pelas poesias que
compõe e desaguam num oceano de reflexões sobre a forma como vivemos e nos
relacionamos nos dias de hoje. Taxação de grandes fortunas, aborto, crise
climática, feminismo: ela não se recusa a falar a respeito de coisa alguma.
Dois casamentos, quatro filhos, um neto. Marina Silva pode
ser tudo, menos fraca ou covarde. E quando dizem que ela não está preparada
para liderar uma nação, a pergunta talvez seja a oposta: será que essa nação
está preparada para uma liderança tão feminina e potente como a que ela poderia
exercer?
Tirem suas conclusões.
Tpm. O que vem à sua cabeça quando você pensa
na floresta?
Marina Silva. Ela era o nosso abrigo, era da
onde a gente tirava sustento. Uma mistura de mistério com dura realidade. Eu
diria que, mesmo em meio a tanta crueza e tanta dureza, tenho muito mais beleza
para recordar. Meu primeiro encontro com a dor da natureza – ou com alguma
coisa nesse sentido – se deu quando eu era criança. Minha mãe queria fazer uma
cama, uns bancos e uma mesa e pediu para o meu pai tirar um pé de cedro. O
cedro é uma árvore que tem muita seiva e é uma seiva cor de sangue. Para poder
tirar o cedro de machado você precisa primeiro sangrar a árvore. Um dia fui
buscar água no igarapé e, quando passei pelo cedro, a árvore estava toda
ensanguentada. Fiquei apavorada e peguei umas casas de cigarra feitas de argila
branca, mole ainda, e fui botando nos cortes. Enquanto fazia isso eu ia dizendo
para a árvore: "Você vai ficar curada, eu estou passando penicilina em
você", que era o único remédio que a gente usava, o único que os patrões
mandavam. Na semana seguinte, meu pai viu a árvore cheia de barro. Ele
perguntou: "Quem foi que fez isso?". Eu falei: "Estava saindo
muito sangue dela e eu passei penicilina". Meu pai fez um olho que
misturava espanto e tristeza. Ele falou: "Agora não tem mais jeito, ela já
morreu, não tem mais seiva, não tem mais nada". Isso foi muito forte.
Quando eu me lembro da floresta, não é apenas a mata, são muitos animais,
insetos, árvores, muitas texturas, cores, aromas, sons. O ruído da cigarra ao
cricrilar dos grilos, o canto exagerado dos jacus dizendo que "tá ruim, tá
ruim, tá ruim", o canto do inambu dizendo "venha cá, por favor, venha
cá, por favor", da siricora dizendo "três cocos, três cocos, três
cocos". Era um imaginário que eu ia criando de uma conversa. É uma
linguagem de quem aprende a olhar, ouvir e compreender a floresta.
Você falou 'os patrões'; quem eram os patrões? Os
seringalistas. O seringal é uma unidade de produção, geralmente com umas 200
famílias que têm unidades produtivas isoladas na mata. A menor distância da
nossa casa para a mais próxima era de 1 hora e 45 minutos andando pela
floresta. São distâncias muito grandes porque são 200 famílias com medidas
entre 200 e 500 hectares cada uma. As árvores de seringas e as castanheiras
nascem naturalmente no meio da floresta, mantendo uma certa distância uma da
outra. Desse modo, para você poder ter uma unidade de produção que viabilize
uma produção razoável por família e ainda dê lucro para o patrão, um seringal
precisaria ter entre 900 e 1.000.000 hectares – ou até mais. Os patrões eram os
donos dessa grande empresa extrativista para a qual os seringueiros trabalhavam
num regime de semi-escravidão. Eles tinham a exclusividade da venda dos
manufaturados para o seringueiro e a exclusividade da compra do produto, que
era a borracha. O preço da borracha era sempre muito barato, o preço das
mercadorias sempre muito alto e, quando eu digo que a gente tinha uma
agricultura de subsistência, é porque os patrões não queriam que você botasse
roçado – quanto menos você produzisse, mais era obrigado a comprar da casa
aviadora, que também era do patrão. Nesse lugar tinha muita dureza, muita
crueza e um seringueiro estava sempre devendo. Mas, ao mesmo tempo, tinha muita
solidariedade entre essas famílias. A gente tinha uma linguagem própria.
Vocês desenvolveram uma linguagem contra a
opressão? Não. Era para se comunicar com os outros mesmo. Por exemplo,
se você estava chegando próximo de uma casa, faltando uns 40 minutos você
procurava uma árvore que tivesse raiz elevada e, com dois pedaços de madeira,
batia nessa raiz de forma ritmada. O som vai muito longe e a pessoa da casa que
escuta diz: "O compadre está vindo". Dependendo da direção do som,
ele sabia se era o compadre Pedro, que era meu pai, ou se era o seu João, que
vinha do lado de lá. Se alguém estivesse na floresta dificilmente via que uma
tempestade estava vindo, então quem estava em casa 'buzinava' para avisar.
Dependendo do toque da buzina você compreendia se era para voltar para casa
porque tinha acontecido alguma coisa ou se era para tentar se proteger porque
vinha chuva com vento. Você podia fazer a buzina com um pedaço de bambu com um
furo ou você podia fazer isso usando uma garrafa de vidro em que você colocava
um prego dentro, sacodia, caía o fundo da garrafa e você usava como
buzina.
Você deixou a floresta aos 16 anos para se tornar freira.
De onde surgiu essa ideia? Minha mãe morreu quando eu tinha 14 anos e
eu fui criada pela minha avó. Foi ela que botou em mim o sonho de ser freira,
pois onde a gente morava não tinha padre, não tinha igreja, não tinha delegado,
não tinha juiz, não tinha escola, não tinha nada. Mas ela me contava sobre o
Ceará, onde nasceu. Ela era analfabeta, mas tinha um repertório muito
sofisticado. Quando adolescente, trabalhou na casa de uma família muito rica e
aprendeu dessa convivência a ter conceitos na oralidade. Minha avó decorava um
folheto de cordel e depois recitava e interpretava para mim. Ela me fez ser uma
criança apaixonada pela palavra. Eu não sabia ler nem escrever, mas com 16 anos
eu já era PhD em narrativas, que pude colocar em jogo quando me deparei com o
letramento da sociedade moderna. Quando minha avó foi para o Acre, levou o
catecismo todo feito em papel couchê, com ilustrações da Capela Sistina, que
não tinha uma palavra a não ser o nome da editora. Era para ensinar aos
analfabetos sobre a Bíblia, do Gênesis ao Apocalipse. Minha avó me catequizou
na fé cristã usando esse catecismo. E ela me contava que no Ceará tinham as
freiras, e que as freiras se dedicavam a Deus. Era tudo muito lúdico, muito
bonito. Desde que me entendo por gente, fui cultivando, digamos, essa semente
da fé. Eu dizia: "Vovó, quando eu crescer quero ser freira". E ela
dizia: "Mas freira não pode ser analfabeta, minha filha". Fui uma
criança criada por pessoas idosas.
Por quem? Por minha avó, por uma tia solteirona
e por um tio solteirão. Meu tio era mateiro e xamã. Ele conviveu muitos anos
com os índios, sabia dos segredos da floresta. Era cesteiro, ceramista,
carpinteiro, ferreiro, uma multiplicidade de competências e habilidades. Eu
aprendi com ele por osmose. Faço um pouquinho de carpintaria e artesanato. Meu
tio criou para mim um universo pictórico das coisas dos adultos: tudo que um
adulto tinha em tamanho normal eu tinha em tamanho de criança. Os adultos
tinham uma enxada grande, eu tinha uma enxadinha; os adultos tinham um
martelão, eu tinha um martelinho. Era uma convivência que se dava embaixo da
nossa palafita porque era ali que ficava, digamos, o ateliê dele. E eu ficava
ali vendo ele trabalhar. Meu tio falava muito pouco, mas eu nunca aprendi tanto
no silêncio. Eu era uma criança que vivia com esse tio, com uma tia solteirona,
com a minha avó, com o cunhado da minha avó que tinha ficado viúvo e com um
velhinho que foi abandonado e que a gente chamava de vovô Manel. Meu pai
sustentava essa casa. Eu ia para casa dele, onde estavam minhas irmãs, brincava
com elas e depois voltava para o meu mundo, com os meus sábios velhinhos.
E quando a ideia de ser freira saiu da sua cabeça? Eu
fiquei no convento, no pré-noviciado, durante dois anos e oito meses. Eu fui
para lá sozinha, minha família ficou no seringal. Nesse período nasceu em mim
uma contradição que tem a ver com o conservadorismo da maioria das freiras do
pré-noviciado onde eu estava. Eram os anos 70, um momento em que o seringal já
estava entrando em decadência e os antigos patrões estavam vendendo essas áreas
enormes para fazendeiros do Sul, do Sudeste e do Centro-Oeste. Essas pessoas
chegavam, queriam derrubar a floresta e expulsar as famílias que estavam ali há
50 anos. Nessa hora o Chico Mendes começa uma luta de resistência contra esse
tipo de exploração. Os índios também resistiam à invasão de suas terras. Eu
ouvia as freiras dizendo que o bispo era comunista, que o Chico Mendes era
comunista. Aquilo doía muito em mim porque eu pensava: "Mas como que Deus
acha que as pessoas que defendem a gente e a minha família são do diabo e as
pessoas que estão fazendo toda essa maldade são de Deus?". Isso passou a
ser uma contradição forte em mim. Aí um dia eu estou na missa e vejo um cartaz
na porta da sacristia. Era uma cartolina azul pregada numa porta azul com uma
escrita feita com uma esferográfica azul, então era praticamente invisível,
quase uma confissão de que "eu tenho que botar isso aqui, mas não quero
fazer propaganda disso". Mas meu olhar foi conduzido e eu vi que se
tratava do aviso de um curso de liderança sindical com a presença de Chico
Mendes. Eu pensei: "Vou me inscrever nesse curso porque quero entender por
que esse Chico Mendes é comunista e esse bispo é comunista". Foi o que
mudou tudo. Nesse dia o [bispo] Clodovis Boff pregou o sermão
da montanha e fez toda uma fundamentação teológica em relação ao compromisso da
igreja com os pobres e com os oprimidos. E o Chico Mendes deu um testemunho do
que ele estava fazendo. Aquilo mudou a minha cabeça. Comecei a receber o
boletim Somos Todos Irmãos clandestinamente dentro do
convento. Esse era o boletim das comunidades eclesiais de base. Eu recebia
também um jornal de resistência à ditadura chamado Movimento.
Devorava os dois tarde da noite e depois os escondia embaixo do meu
colchão.
Como você saiu do convento? Chegou um momento
que a madre superiora falou que eu já estava pronta para ir ao Rio de Janeiro.
Como tinha terminado o supletivo do segundo grau, já poderia ir ao Rio fazer os
votos iniciais para começar uma formação acadêmica como freira iniciante. Eu
pensei: "Não posso ir porque não sou mais a mesma pessoa que queria uma
vida de reclusão e oração". Me transformei em uma pessoa que queria se
envolver com as coisas que eles diziam ser de comunista. Eu achava que era a
mais profunda forma de tradução do amor de Deus seguir pela justiça, pela
liberdade, pela verdade. E pensei: "Vou servir a Deus dessa forma".
Fui trabalhar de doméstica durante um período para continuar estudando e saí do
convento. Me envolvi nas comunidades de base, passei a ser coordenadora da
Paróquia do Cristo Ressuscitado, me envolvi com Chico Mendes, entrei na
universidade, entrei em movimento estudantil… O céu era o limite.
A gente está em 1975, por aí? Em 78 saí do
convento. Em 79 contraí hepatite e não consegui fazer o vestibular para começar
a faculdade em 80. Fiz o vestibular no final de 80. Comecei a estudar aos 16 e
aos 22 eu estava na faculdade, tendo perdido dois anos em função da hepatite.
Qual a sua denominação evangélica? Assembleia de
Deus.
Que é Pentecostal? Sim.
Você teve formação católica, foi muito ligada a um tio
que era xamã e hoje é evangélica. Como foi mudando ao longo dos anos sua
relação com o divino? É uma relação que se mantém até hoje, mas como
toda relação você pode torná-la rarefeita ou adensá-la. Eu diria que é uma
relação com Deus que se adensa e eu sou grata por isso. Tive uma conversão na
conversão. Eu tomo esse termo emprestado ao padre Henri Nouwen, que escreveu um
livro maravilhoso chamado A Volta do Filho Pródigo. Ele já era
padre quando foi ao museu e, diante da obra [de mesmo nome] de
Rembrandt, meditou e teve uma conversão na conversão. Aconteceu o mesmo comigo.
Mantenho uma relação de respeito com os meus amigos padres, respeito todas as
pessoas a despeito de crerem ou não. O preconceito não tem nada a ver com o
cristianismo. Jesus diz que a gente não deve fazer acepção de pessoas. Se você
quer ser preconceituoso, seja por sua conta, não busque fundamento na Bíblia.
Deus não te obriga a escolhê-lo, a escolha é sua. Se você não escolhê-lo mesmo
assim você vai ter saúde, vai ter sol, vai ter ar, vai ter chuva, ética e
valores.
E por que se deu essa conversão na conversão? A
conversão é sempre um mistério, né? Minhas irmãs já eram evangélicas da
Assembleia de Deus e, obviamente, esse processo todo está ligado a eu ter tido
contato com a fé delas. Durante muito tempo, houve em mim um estranhamento, um
estranhamento preconceituoso. Uma vez, logo depois de ter me convertido, estava
em um debate na Bahia e um professor universitário falou: "Eu não consigo
entender como é que uma pessoa tão inteligente é da Assembleia de Deus".
Ninguém diz: "Eu não consigo ver como alguém tão inteligente é
católico". Ou "Não consigo entender como você, tão inteligente, é
ateu". A fé é algo que faz parte da espiritualidade, da transcendência. Da
mesma forma como o lúdico, o sonho, o desejo, a fantasia e tantas outras
coisas, é algo que nos atravessa. E você pode transcender de formas diferentes:
pela fé, pela arte, por qualquer forma.
O que a gente tem visto hoje é um país levado ao inferno
em nome de Deus. Essas formas de usar o nome de Deus para promover o
ódio, o preconceito ou qualquer forma de opressão são uma incoerência. Nada
mais incoerente com quem disse: "Quando eu estive preso, tu me visitaste,
quando eu tive fome, tu me deste de comer, quando eu estava nu, tu me deste de
vestir". Jesus se coloca no lugar do preso. Ele se coloca no lugar do
faminto, no lugar do que se sente abandonado. Nenhuma guerra se justifica em
nome de Deus.
Como você passou por essa pandemia? E como passou tendo
que ver a floresta, que é esse lugar tão importante pra você, sendo devastada
como nunca antes? A pandemia colocou a morte, esse impensável – porque
a morte é sempre o impensável – mais presente no nosso dia a dia e nas nossas
relações. A gente vê a morte da floresta, dos animais, dos rios, a gente vê
morte por todos os lados. Se a gente quiser condensar tudo isso, a gente diz:
"A pulsão de morte está em plena atividade". Quando no final da
década de 60 eles abriram a trilha definitiva da BR 364 [que liga São
Paulo ao Acre] isso trouxe muitas máquinas, muitos trabalhadores, e
com eles um surto de sarampo e de malária sem precedentes. Então, só na minha
família, morreram meu tio, meu primo e duas de minhas irmãs. Depois, veio um
surto de meningite e morreram minha mãe e minha tia. Minha mãe morreu aos 36
anos e eu não pude ver o corpo dela. Logo depois, recebemos a visita de umas
pessoas da equipe de saúde que disseram que teriam que queimar a nossa
palafita, queimar as nossas coisas. É muito terrível e dramático. Quando vejo a
dor das pessoas, o sofrimento dos médicos, tudo isso que está acontecendo,
essas memórias voltam. Não se pode minimizar o luto. E quando eu vejo o
presidente minimizando as causas das mortes, deixando de criar empatia com o
luto, é algo terrível. O que se espera é um acolhimento que seja traduzido em
três dimensões: do respeito, de prover os meios necessários ao tratamento e à
informação. Mesmo que você esteja imunizado, você é um agente que educa. Quando
você perde a perspectiva da alteridade, de se colocar no lugar do outro, você
perde tudo. Não é porque você nunca passou fome que você não entende a
necessidade de comer de quem passa.
Você imaginou que você fosse ver o Brasil como esse de
hoje? É muito difícil a gente pensar que depois do sonho sonhado e, em
certa parte, do sonho realizado, possamos viver situações como essas. No
entanto, se a gente olha para tudo o que foi acontecendo, a conclusão é que
infelizmente, consciente ou não, se trabalhou para isso. Porque há uma decepção
muito grande da sociedade com aqueles que tiveram a oportunidade de governar
por um longo tempo na democracia e não foram capazes de cultivá-la na sua
essência. E a essência da democracia tem a ver, também, com a alternância de
poder. É você ter políticas de longo prazo no seu curto prazo político e não
imaginar que você tem um projeto ideal que só funciona com você – porque quando
o projeto ideal só funciona com você, já foi embora com ele a democracia. As
políticas públicas e as instituições não podem ser fulanizadas e, infelizmente,
nossa tradição é a fulanização.
Como você avalia o fato da gente estar vendo no mundo
inteiro uma certa tendência ao fascismo? Nós estamos vivendo um
processo de colapso. Quando você vê uma crise econômica, uma crise sanitária,
uma crise social, uma crise política, uma crise de valores, tudo isso se
conecta numa única crise: da civilização. As crises civilizatórias não são
fáceis de serem percebidas porque geralmente elas não acontecem em função dos
fracassos, mas em função dos sucessos – os sucessos levam à repetição. Nós
inventamos algo potente com a substituição das monarquias pelas democracias
desde a Revolução Francesa. Conseguimos produzir alimentos, transporte, meios
para se comunicar, mas toda essa produção precisa de energia. E, de tanto
repetir essa operação de sucesso, chegamos ao limite da capacidade. Com o
sucesso de termos criado tantas formas de se comunicar, a gente acaba também
exponencializando coisas como a mentira, o ódio. E aí a gente vive um momento
de quase quebra do laço social. E se nós paramos de nos preocupar é porque algo
está ameaçando a continuidade da nossa espécie, que não nasce pronta. Minha avó
dizia assim: "Ah, menina, você tem que aprender a ser gente". Nós
aprendemos a ser gente amando com os olhos de quem nos amou, amando com o toque
de quem amorosamente nos tocou. Se nós pararmos de olhar amorosamente, de
cuidar, então já estamos derrotados em termos da nossa continuidade. Quando eu
me disponho a destruir os recursos de milhares de anos pelo lucro de uma
década, eu já perdi o laço social, eu já sou um morto-vivo. Destruir a Amazônia
é destruir o planeta e, se eu não me importo com isso porque preciso ter lucro
na próxima safra de soja ou no próximo carregamento de madeira, eu já rompi o
laço social. É disso que se trata.
Há esperança? Os povos indígenas potentemente
resistem. Hannah Arendt diz: "O homem ainda que morra nasceu para
recomeçar". E, nesse momento, nós temos esses recomeços e eles estão por
toda a parte. Cada um de nós é radicalmente singular e radicalmente atravessado
por esse outro que nos sustenta e nos completa. Eu acho que tudo isso forma
essa crise no tamanho que ela é. Só que a vida, ainda bem, insiste. Tem uma
pessoa que eu conheci na França, um psicanalista de uma organização chamada
Insistência, que diz: "Onde foi, seja". Onde foi amor, seja.
Onde foi liberdade, seja. Onde foi respeito, seja. É essa insistência
que precisa ser feita juntando a contradição de potência e de impotência de um
ser humano, que só existe porque na base da sua existência tem uma coisa
chamada amor, tem uma coisa chamada cuidado.
No Brasil, quando dizemos que precisamos lutar pela volta
da democracia, tem gente que diz: "Que democracia? Eu nunca vi essa
democracia da qual você fala. Onde eu moro a polícia entra chutando, onde eu
moro não tem privacidade, onde eu moro não há nada disso aí que vocês pregam
que a gente precisa voltar a ter. Eu nunca tive isso". Como olhar para
esse Brasil que tem tanta gente que nunca viu a democracia? A
democracia tem o seu valor ontológico, digamos assim. Quando ela foi fundada,
não era para as mulheres, para os escravos, para as crianças. Hoje, a
democracia é incomparável, menos para os pobres, para os pretos, para as
mulheres, para os índios. Temos que lutar para que ela seja para todos. Não uma
democracia em que você tem apenas a liberdade de dizer, mas a liberdade de ser,
de fazer, de viver, de exercer. Uma pessoa preta precisa ter a liberdade de
entrar no curso que ela desejar. Precisa, inclusive, ter a liberdade e o
direito de ter em si os ideais identificatórios que as leve a desejar, porque
as pessoas foram privadas do próprio direito de desejar. Sou muito grata a
minha avó, que introjetou em mim um desejo de estudar que não existia nas
crianças do lugar onde eu morava. Isso não era uma questão, não havia escola,
todos eram analfabetos. Por isso a democracia é tão importante: ela gera o
contato com realidades e situações diferentes. Por isso que é tão importante
que numa escola de excelência, como a USP, a UFRJ, a UNB, a Unicamp, tenhamos o
índio, pessoas de outra condição social, por isso que é tão importante a cota.
A cota não é um benefício apenas para o índio e o preto que acessa a
universidade, ela é um benefício humano para todos os que terão a oportunidade
dessa convivência com realidades tão diferentes. É preciso buscar meios de
transição para essa democracia.
A gente vê uma crise no Brasil que é assustadora: são 14
milhões de desempregados, e a gente sabe que o número é maior do que esse; 60
mil assassinatos por ano, um número de guerra civil. Por outro lado, a gente vê
bancos que lucram trilhões por trimestre. Como você analisa um sistema com
essas contradições estruturais? E que crise é essa em que bancos continuam
lucrando tanto? É o colapso de um sistema que não tem como continuar.
O debate sobre taxação de grandes fortunas não pode ser relevado. Não há como
uma minúscula parte de pessoas acumular o que têm três bilhões de pessoas. Não
há como, em meio a uma crise como essa, ter um grupo que lucra apesar das
circunstâncias. A mudança que eu imagino pressupõe que a sustentabilidade não
se dá apenas na dimensão ambiental; ela se dá na dimensão econômica, social,
ambiental, cultural, política, ética e até mesmo estética. Não é compatível com
os desafios que estão colocados para a dignidade humana o nível de acumulação
que temos. Não é possível botar qualquer remendo em um sistema que produz mais
destruição ambiental e mais destruição em termos das desigualdades sociais.
Essa é a mudança que precisa ser feita. Não por acaso, a gente hoje vê o debate
entre o fiscalismo dogmático e uma inflexão sobre esses paradigmas diante da
radicalidade dos dados que você apresentou. É impossível ter algum tipo de
estabilidade política e institucional em um cenário em que 60 milhões de
pessoas não terão o que comer. Ou as pessoas param para pensar isso e buscam um
caminho de equidade, ou não tem jeito. O Estado não pode repetir o tempo todo
as mesmas fórmulas que o sistema manda. A realidade tem que falar mais alto.
Muita gente consegue perceber o que é o negacionismo climático ou científico,
mas não consegue ver o negacionismo econômico. É muito fácil ver um
negacionismo no outro, difícil é ver o seu próprio negacionismo, que é quando
você imagina que dá para manter a mesma forma de repetição de sucesso econômico
social e cultural que nos trouxe a essa desigualdade e ao nível de degradação
ambiental que temos.
A gente olha para a campanha de 2018 e vê que nenhum
candidato tinha em seu programa coisas diretas contra o genocídio da população
negra, contra o feminicídio, essas pautas não estavam nos debates. Se daqui a
dois anos você quiser ser candidata de novo, você colocaria essas pautas dentro
de uma agenda prioritária? Eu considero que no meu programa essas
pautas eram uma prioridade. Quando você coloca políticas públicas para combater
estruturalmente o racismo é porque você está colocando isso como prioridade.
Não é apenas no tópico que vai estar expresso isso, é o que está plasmado no
conjunto do programa quando você pensa em emprego, em educação, na proteção dos
direitos, no combate às formas de discriminação que se expressam com as
mulheres e com os negros através de um salário menor, ou que se expressam com
os índios na tentativa de aniquilá-los. Não adianta o meio ambiente ser um
tópico no programa de governo se isso não se reflete na política de agricultura
e, quando você vai destinar os recursos do financiamento, tem 14% para
agricultura familiar, 1% para a agricultura de baixo carbono e o resto todo
para agricultura que destrói floresta, destrói pantanal, destrói serrado.
Eu sempre repito uma palavra que acho que é do [psicanalista
argentino] Ricardo Goldenberg que diz que só os tiranos propõem um
destino onde tudo já está resolvido. Os democratas colocam a possibilidade de
uma vida melhor construída com o esforço de todos. A população preta sempre vai
enxergar mais do que qualquer governo que se disponha a enxergar tudo por ela.
As mulheres sempre vão perceber mais do que qualquer governo que queira ter a
pretensão de perceber e atender tudo por elas. Não sei se dá para entender o
que eu estou dizendo. Eu defendo o meio ambiente, mas quem me critica não está
criticando o meio ambiente. Existe um pensamento autoritário de esquerda que,
quando você critica alguém, é como se você estivesse criticando a própria
legitimidade daquela causa ou daquela bandeira – e isso é muito ruim para
democracia e para as próprias causas. Não é porque eu critico um político
operário que eu estou criticando os operários, não é porque eu critico uma
determinada visão de direitos humanos que eu estou criticando o próprio
estatuto da defesa dos direitos humanos.
O debate fica muito em pessoas e não em ideias e por isso
as suas ideias raramente chegam ao debate. O que vem antes é a mulher, é a
mulher da floresta, é a mulher negra. Aliás, como você se identifica,
Marina? Eu me identifico como uma mulher negra. Meu pai era negro com
ascendência indígena e minha mãe era filha de português. Eu fui descobrir o
preconceito com o negro quando fui para a cidade. O que se colocou no meu
contexto político é a luta socioambiental, mas, como eu digo, ninguém totaliza
o todo. Eu me sinto representada como mulher negra participando da luta do
movimento negro no trabalho do Frei David, do EducAfro, por exemplo. Eu digo
que a gente é arco e a gente é flecha, porque uma hora eu sou o arco que
empurra a flecha em algumas coisas, principalmente nessa agenda ambiental. Mas
noutra hora eu sou a flecha que é empurrada pelo arco de um outro lugar.
Eu vejo você às vezes muito solitária nessa luta
política. Para a direita você é mulher e negra, e isso soa como fraqueza. Para
esquerda, você é evangélica, e isso soa como fraqueza. Você se sente às vezes
sozinha nessa batalha? Uma coisa que as pessoas dizem é que eu estou
sumida. Não importa se o tempo todo eu trabalho em prol das causas que eu
acredito. Da forma como eu me disponho a fazer política, eu não existo. Eu fui
pensando "por que isso?" e aí fui juntando coisas. Primeiro, porque
para uma visão autoritária nada pode existir que não seja a própria construção
daquele olhar. Então, como você tem autoritarismo de direita e de esquerda,
aquilo que não se abriga em um desses guarda-chuvas não existe, porque isso
pressupõe o terceiro, o lugar da escolha. O autoritarismo não permite a
escolha. O máximo que o autoritarismo permite é a opção, e optar, dizia a minha
professora de psicopedagogia Alicia Fernandes, é diferente de escolher. Na
opção, eu vejo o que já existe e faço um cálculo do que é mais vantajoso ou
menos prejudicial pra mim. Na escolha, com os materiais que tenho eu posso construir
um lugar para onde ir. Eu vivi a escolha a vida toda, não é? Pra mim, isso é
democracia, isso é a liberdade. No lugar onde eu nasci, tinha a opção. A minha
avó, minha mãe, meu pai e meu tio me deram elementos com os quais, de alguma
forma, pude criar um lugar de escolha para mim. Mas a opção era casar com um
seringueiro, virar uma mãe de família, uma agricultora de subsistência ou ficar
solteirona como a minha tia, morando para o resto da vida com algum irmão.
Minha mãe me ensinou de cara a quebrar isso. Mulheres não cortavam seringa,
elas cuidavam da casa e da roça de subsistência. Muita gente dizia: "O
Pedro, coitado, é um infeliz: só teve filha mulher". E a minha mãe dizia:
"Nós vamos mostrar que vocês não são uma desgraça na nossa família".
E ela nos ensinou a cortar seringa. Nós aprendemos a fazer tudo que os homens
sabiam fazer. Só que o lugar da escolha é um incômodo para a visão autoritária.
Então, se você não está nem embaixo do guarda-chuva do azul nem embaixo do
vermelho você não existe. Ficou muito perigoso não estar abrigado dentro de um
território porque você sabe que vai ser massacrado.
Estamos falando sobre liberdade? O [Zygmunt] Bauman
diz que as pessoas começaram a trocar liberdade por segurança. Se a gente olha
para a meca do pensamento liberal e da liberdade individual, que são os Estados
Unidos, a individualidade é o tempo todo bisbilhotada em nome da segurança. A
gente consegue ver isso no macro, mas isso existe também no micro: nas relações
as pessoas trocam liberdade por afeto, por pertencimento e até pelo prazer de
continuar sentadas na mesa do bar nos finais de semana. Para mim, o desafio
hoje não é o de ser socialista, comunista, capitalista; o grande desafio é o de
ser sustentabilista, entendendo a sustentabilidade não só como algo no escopo
ambiental, mas para além disso. A sociedade está insustentável do ponto de
vista econômico, social, cultural, ambiental, insustentável do ponto de vista
dos valores. Estou lendo um livro que é muito interessante chamado Depois
do Futuro que fala que o século XX foi o século das utopias e que
agora estamos vivendo em uma suspensão. Aliás, o século XX foi o que acreditou
no futuro e agora nós estamos vivendo essa situação de um futuro que não veio
porque ele foi tragado pelo sistema que vai fagocitando tudo. O futuro é o que
nós estamos fazendo agora.
E vislumbrando uma possível ausência de futuro. A
possibilidade desse 'não futuro' não apenas como categoria intangível, mas como
categoria concreta, real, que é o de condições que limitam a sucessividade da
vida. Leonardo Boff diz que ético é tudo que promove e sustenta vida. Nesse
momento nós estamos vendo a possibilidade de prevalecer uma ética que não
promove e não sustenta a vida.
O movimento feminista brasileiro foi responsável pela
maior campanha contra o Bolsonaro antes de ele ser eleito: mais de um milhão de
mulheres nas ruas. Essa terceira onda do movimento feminista no mundo vem forte
e está alargada para acampar a luta antirracista, anti-LGBTfóbica e, em muitas
escalas, a luta anticapitalista. Como você vê os movimentos feministas
hoje? Eu gostei que você usou a palavra onda porque as pessoas pensam
que onda é uma coisa que passa, mas onda é algo que permanece. Não tenho
repertório para dizer isso tecnicamente, mas a força que promove as ondas é
constante. E a condição da luta das mulheres contra a discriminação, o
preconceito, as estruturas que promovem a desigualdade diante dos homens é
constante. Somos seres humanos, essa é a nossa base comum, e se essa condição
está ultrajada para a maior parte da população do planeta e do nosso país – não
só apenas do ponto de vista do discurso, mas das próprias estruturas que
produzem as práticas – então é constante, é permanente. "Onde foi,
seja". Somos seres vivos plenos de direitos, de capacidades, e essa
plenitude não pode se realizar apenas em uma parte. Então é assim em relação às
mulheres, aos negros, às pessoas com orientação sexual LGBTQ+, é assim com
todos aqueles que compartilham essa base comum. Somos radicalmente diferentes e
radicalmente iguais. Somos humanos, não é? Eu estava conversando com a minha
filha e falando que muitas pessoas, antes de pensarem na mulher que foi aviltada
e ultrajada pelo Robinho e por seus amigos, lamentam por sua carreira. Subtraem
aquele corpo aviltado no chão e lamentam a carreira do Robinho! O que produz
esse tipo de indiferença? O que produz essa ruptura na alteridade de ter um ser
humano que vale menos do que o sucesso do outro? Essa luta ganha corpo, alma,
lei e interdição na luta das mulheres, que deve ser a de todos os seres
humanos.
Essa mesma luta das mulheres coloca em pauta o direito de
interromper uma gravidez. A mulher da periferia não tem acesso ao aborto, mas a
mulher rica sempre pôde fazer aborto no Brasil. Você falou agora da diferença
entre escolha e opção, e durante essa entrevista a gente está falando muito de
como a vida é movimento. Você tem hoje uma posição diferente da que tinha em
relação ao direito da mulher de interromper uma gravidez? As formas
que nós temos hoje para que essa gravidez seja interrompida no caso do estupro,
no caso do risco para saúde, no caso da criança que não tem o cérebro, já estão
estabelecidas em lei. Para que essas formas sejam ampliadas, como propõem
algumas mulheres e alguns movimentos feministas, eu defendo que isso seja feito
não por uma decisão apenas dos 81 senadores e dos 513 deputados, mas através de
um plebiscito e de um debate amplo na sociedade brasileira, como já aconteceu
em várias democracias do mundo. Defendo o debate para que se possa estabelecer
um espaço de convencimento e de interação entre as diferentes posições. O que
está em jogo envolve aspectos ligados à ética, à filosofia, ao direito, à
cultura, à moral, à realização dos indivíduos e à espiritualidade. Ao advogar
pelo plebiscito eu pago o preço por isso tanto no meio religioso quanto no meio
dos que defendem que isso seja feito por uma lei no Congresso. Mas esse é o meu
lugar de exercício da minha liberdade. Eu nunca fiz um discurso dentro da
igreja que eu não tivesse feito fora dela. E eu nunca fiz um discurso fora que
não tivesse feito dentro da igreja. Se você tem uma posição sobre o aborto
diferente da minha, você tem o direito de não votar em mim se julgar que isso
inviabiliza todo o resto daquilo que eu represento. Talvez isso explique muitos
dos meus fracassos, mas eu tomei uma decisão. Eu não caio na expectativa
daqueles que acham que irei atendê-los na totalidade dos seus desejos. Eu posso
não atender a sua expectativa em relação ao aborto, mas isso nos inviabiliza?
Você pode não me atender nas minhas expectativas de cunho religioso, mas isso
nos inviabiliza?
O que não é negociável politicamente? Acho que o
fascismo. E o fascismo é também introjetado nas pessoas, passa a ser uma
estrutura, um modus operandi. Não necessariamente a pessoa tem um aparato
teórico fascista, mas passa a ter atitudes que são de natureza fascista. A minha
vida e a minha trajetória foram sempre de separar aquilo que é a capacidade do
diálogo das formas disfarçadas de aliança e conivência. Eu, sinceramente, acho
muito estranho que algumas pessoas pensem que eu sou um grande mal pra
sociedade quando não viram esse mal nas posições de estar com o Maluf, com o
Collor, com o Renan Calheiros. Há limites e os limites são estabelecidos no
terreno da ética, da política, dos valores. Mas cuidado: combater as ideias não
significa querer eliminar as pessoas.
Você concordaria com historiadores e filósofos que
avaliam que o Brasil está vivendo hoje sob o fascismo? O Brasil e o
mundo estão vivendo um processo de reconexão com essa forma perversa e
recalcada de relação com a política, com as instituições e com as pessoas. O
grande incômodo de uma visão radicalmente autoritária é com quem tem a
capacidade de gozar diferente. Isso está na nossa ancestralidade: a eliminação
dos índios que eram cinco milhões e hoje são 900 mil. Nós eliminamos um milhão
a cada século. Esse desejo de eliminação do que goza diferente é o que há de
mais radical.
Você se arrepende de não ter apoiado Fernando Haddad de
forma mais contundente? Não entendo essa pergunta. Eu declarei voto em
Haddad. Fui a única. Os que criaram o ovo da serpente que não venham agora
posar de que não foram eles que criaram. Eu agi de acordo com a minha
consciência: declarei meu voto em Haddad.
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