Vai-se a primeira pomba despertada…/Vai-se outra mais…/ Mais
outra…/ Enfim dezenas…
Quando menino, costumava declamar esse soneto de Raimundo
Correia na escola. Éramos endiabrados e fazíamos piadas de duplo sentido quando
a ingênua professora dizia para as meninas que liam os versos: mostrem a pomba.
Essa lembrança me veio à cabeça com a publicação do Anuário
de Segurança Pública, revelando o fracasso da política de Bolsonaro para conter
a violência no país. Vai-se a segunda pomba, pensei.
A primeira já se foi há algum tempo. Era a luta contra a
corrupção. Bolsonaro demitiu Moro, Queiroz foi preso, surgiram inúmeros dados
sobre rachadinhas e funcionários fantasmas na família do presidente. Rolou
muito dinheiro vivo, compra de lojas, apartamentos , os Bolsonaros não confiam
em banco. O dinheiro tanto rolou que terminou aparecendo na cueca do senador
amigo, Chico Rodrigues.
Pobre lobo-guará. As notas com sua estampa estrearam nas
nádegas de Chico. Conheço uma família de lobo-guará que come todas as noites no
pátio do Colégio do Caraça. Os padres que alimentam os lobos precisam rezar por
nós.
Apesar da pandemia, o número de mortes aumentou em 7% em
2020. Havia caído em 2019. Era resultado do governo Temer, que criou o
Ministério da Segurança, o sistema integrado e fez a intervenção militar no
Rio. Bolsonaro e Moro celebraram, faz parte do jogo. Mas o mérito estava lá
atrás.
Um país que tem um estupro a cada oito minutos, com uma
cidade como o Rio, que perdeu mais de 50% do território para as milícias,
homenageadas no passado pelos Bolsonaros, é, no mínimo, inseguro, para não
dizer falido.
Bolsonaro apenas aumentou o número de armas. Seu objetivo
único é ganhar votos com policiais. Seu projeto: uma licença para matar que
leva o pomposo nome de “excludente de ilicitude”.
No momento em que era preciso um olhar atento de um
especialista em segurança, Bolsonaro não conseguiu ver as limitações do artigo
que libertou André do Rap. Simplesmente, sancionou.
Não é apenas a segunda pomba que vai. Vai-se outra, mais
outra. Ao ser acusado de estupro na Itália, o jogador Robinho disse que era
como Bolsonaro, perseguido pelo demônio . Ele acha que basta citar Bolsonaro e
um trecho de Bíblia para justificar crimes cruéis. Em breve, essa máscara de
profunda religiosidade vai cair para mostrar a verdadeira face do oportunismo político.
Eduardo Cunha era supercristão, elegia-se usando rádios religiosas. A deputada
Flordelis, acusada de matar o marido, é pastora, e o pastor Everaldo, que
batizou Bolsonaro, está na cadeia.
Numa dimensão mais profana, em breve voará a pomba dos
devotos da Santa Margaret Thatcher. Ela sempre aparecia com a bolsa no pulso,
sem mexer um músculo do braço. Seus discípulos tropicais rodam a bolsinha
incessantemente em busca de recursos para garantir a reeleição de Bolsonaro.
Muitos eleitores não veem quais sonhos de campanha não
voltam, como voltam as pombas ao entardecer. Ficam bravos, lembram que fui um
perigoso terrorista ou que usava uma tanga de crochê, não importa. É
importante, no entanto, continuar mostrando o voo das pombas e de suas ilusões.
Mesmo com parte do país em chamas, com o crescimento da
fome, o aumento da violência e do jugo das milícias, é preciso argumentar com
eles. Alguns seguirão fiéis ao líder, mas, no fim do caminho, o Brasil pode
reencontrar sua chance de ser grande país.
Existe uma vacina contra a raiva, mas não existe uma vacina
combinada contra raiva e estupidez. Bolsonaro não consegue ver um vírus tal
como é, mas sempre como um vírus que tem partido: é chinês ou vota em Doria.
Ao cancelar a compra de vacinas formuladas na China, mas
produzidas pelo Butantan, Bolsonaro não apenas desautorizou um general que
deixou tudo para ajudá-lo, adotando uma política que ameaça inclusive a
presunção de sensatez das Forças Armadas.
Da negação do coronavírus à apologia da cloroquina,
Bolsonaro percorreu todas as etapas de uma política insana.
Foram-se todas as pombas, e só os bolsonaristas não viram.
Artigo publicado no jornal O Globo em 26/10/2020
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