quarta-feira, 4 de novembro de 2020

IGNOMÍNIA

Editorial Folha de S.Paulo

Naquilo que se tornou uma desagradável recorrência, o sistema eleitoral americano fez o mundo prender a respiração. Vivas são as memórias do impasse de 2000, quando George W. Bush triunfou um mês depois do pleito, numa cruenta disputa judicial.

Em 2016, Donald Trump repetiu seu colega republicano e também venceu sem ter a maioria do voto popular. A distorção vem do sistema arcaico de votação nos EUA, que reflete o caráter federativo central para a fundação do país no final do século 18. Vence quem tiver mais votos no Colégio Eleitoral.

Com uma eleição indireta no qual o sistema de votação é díspar nas 50 unidades do país, a confusão é certa quando a polarização se acentua. Pequenas diferenças podem mudar todo o resultado final.

E a divisão da sociedade americana só fez crescer na montanha-russa que foi até aqui o mandato de Trump, marcado pelo teste constante das fronteiras da democracia.

Assim como seus devotos no exterior, e por infortúnio Jair Bolsonaro se sobressai entre eles, Trump busca a imposição de uma agenda personalista temperada com mentira e mistificação. Os instrumentos democráticos lograram conter seus piores intentos, por ora.

Ainda assim, é com amargo gosto de previsibilidade que se assiste ao espetáculo promovido por Trump desde a madrugada.

O presidente cantou vitória com resultados parciais favoráveis em alguns estados nos quais a corrida contra Joe Biden estava apertada.

Pior, disse que iria à Justiça com o objetivo de parar a contagem, de modo a interromper o jogo antes do fim. Seu arremedo de tese é que os democratas estimularam o voto antecipado pelo correio, que seria vulnerável a manipulação.

A pandemia impulsionou a modalidade neste ano. A participação, segundo estimativas, será a maior em 120 anos. Mas, para o presidente, “isso é uma enorme fraude”. “É uma vergonha para o nosso país. Francamente, nós ganhamos esta eleição”, disse, como um garoto mimado, o republicano.

Ele tinha, àquela hora, motivos para celebrar. A “onda azul”, em referência à cor do Partido Democrata de Biden, não se concretizou.

Os democratas falharam em galvanizar apoio entre minorias, como os hispânicos, o que lhes custou os preciosos 29 votos de Colégio Eleitoral na Flórida. A divisão do país se aprofundou, o que favorece o jogo extremista de Trump.

Biden deu uma resposta à altura, prometendo obstruir a ignomínia professada por Trump. Com a aparente reação democrata na apuração desta manhã de quarta, parecem estar garantidas novas rodadas de ataques aos fundamentos da democracia. Prender a respiração terá mais de uma utilidade.

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