Duas vezes Rodrigo Janot, ex-procurador-geral da República, ouviu o recado. E nas duas vezes ele não compreendeu a recomendação de que seria difícil manter a Operação Lava Jato como pilar central do combate à corrupção no Brasil.
“Já sabe quando o senhor vai terminar a investigação?”, indagou a então deputada italiana Marina Sereni, durante um jantar na Embaixada da Itália, em 2015. A pergunta era uma forma de alertá-lo de que a Lava Jato – iniciada no ano anterior – deveria planejar bem o seu próprio encerramento para evitar que isso fosse feito por uma “mão externa”, na expressão de Sereni. Quem conta o episódio é o próprio Janot, em uma passagem de seu livro de memórias, Nada Menos Que Tudo, publicado no ano passado. “Só hoje consigo entender o alcance daquelas palavras. Agora que vejo esse movimento vasto, de múltiplas procedências, para ‘estancar a sangria com o Supremo’, com tudo”, escreveu ele.
Outro recado lhe foi dado – e também não foi bem compreendido – em 2016, durante o seminário Corrupção Sistêmica: Os Controles Falharam?. Realizado na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, o evento reuniu o então procurador-geral e a professora Susan Rose-Ackerman, da Universidade Yale, autora de diversas obras de referência sobre corrupção, como Corruption and Government (Corrupção e governo, ainda não traduzida no Brasil).
Em sua fala, Janot celebrou os números de prisões e delações premiadas da Lava Jato e disse que a operação tinha importado o melhor da tecnologia norte-americana de combate à corrupção. Mas Rose-Ackerman argumentou que, nos Estados Unidos, a experiência demonstrava outra coisa: que os esforços de prevenção à corrupção geram melhores frutos do que as operações de repressão. Modificar as regras e os procedimentos de contratações públicas para torná-las mais transparentes e abertas à competição, por exemplo, é medida mais eficaz para lidar com problemas de fraude em licitações do que investigar e punir esses casos. Punir é importante, é claro, mas controlar todos os desvios em cada uma das contratações públicas é tarefa quase impossível – daí a importância de um sistema rigoroso de acompanhamento da implementação daquela medida.
A professora tentava explicar a Janot que o futuro do combate à corrupção deveria se apoiar em algo mais trabalhoso e menos glamoroso do que as grandes operações de acusação e condenação de corruptos: rever a relação entre o setor público e privado, mapeando áreas vulneráveis a relações corruptas e projetando soluções que desestimulem a violação das regras.
Janot, cético quanto à disposição dos políticos para mudar por iniciativa própria leis e normas que poderiam prejudicá-los, estava convencido de que o melhor seria puni-los, a ponto de forçá-los a aprovar reformas que tornassem o ambiente menos corrupto. E outra vez Rose-Ackerman apontou problemas. Essa estratégia, segundo a professora, poderia até incentivar certos agentes políticos a promover em suas campanhas o discurso da honestidade, mas isso de pouco adiantaria, caso o eleito tivesse que, mais tarde, formar coalizões com partidos ou setores desonestos. Por consequência, dificilmente as reformas que visassem diminuir a corrupção do sistema seriam aprovadas. Nesse regime de coisas, como se deduz, as práticas políticas acabam sendo inevitavelmente menos honestas do que o discurso eleitoral.
Quase seis anos depois do início da Operação Lava Jato, interessa voltar a esses recados transmitidos ao antigo procurador-geral da República. Não é recomendável que o combate à corrupção tenha exclusivamente por base grandes operações judiciais de investigação e punição, nem que essas operações assumam a linha de frente da luta contra os corruptores. Embora a atuação judicial seja parte relevante, é um erro depositar nela a confiança prioritária na solução do problema. A via judicial é menos eficaz que as soluções de prevenção, e as grandes operações – com o impacto midiático que acarretam – podem, ao longo do tempo, acabar sendo prejudiciais ao próprio combate à corrupção.
As recomendações feitas a Janot remetem à Operação Mãos Limpas, investigação judicial italiana desencadeada em 1992 que declaradamente serviu de inspiração à Lava Jato. Como esta, a Mãos Limpas teve início depois de um mero flagrante. Acabou por expor a corrupção sistêmica no mundo político italiano e condenando cerca de 1,2 mil pessoas.
O meio político se organizou para desmantelá-la a partir de 1994, com normas que engessaram a capacidade de investigação e punição dos corruptos. Um promotor da Mãos Limpas, Piercamillo Davigo, afirmou (no livro Corrupção: Lava Jato e Mãos Limpas) que a retaliação sofrida foi tão severa que a questão do combate à corrupção perdeu relevância nos debates públicos e eleitorais. A operação acabou conduzindo à sintomática eleição de Silvio Berlusconi ao cargo de primeiro-ministro, apesar do seu notório envolvimento com práticas suspeitas. Em 2009, o cientista político Alberto Vannucci, um dos mais famosos especialistas na operação, apontou em um artigo de título extenso – The Controversial Legacy of “Mani Pulite”: A Critical Analysis of Italian Corruption and Anti-Corruption Policies (O legado controverso da “Mani Pulite”: uma análise crítica da corrupção italiana e das políticas anticorrupção) – que o legado da Mãos Limpas foi manter e talvez aumentar o grau de corrupção no país, bem como ampliar o conflito entre os poderes políticos e o Judiciário.
O fracasso da Mãos Limpas em lidar com a corrupção era conhecido pelo então juiz Sergio Moro, que, num texto publicado dez anos antes do início da Lava Jato – Considerações sobre a Operação Mani Pulite (publicado em 2004 na Revista CEJ, do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal) –, defendeu que a operação feita na Itália, apesar dos defeitos, deveria ser mimetizada no Brasil. Para tanto, seria preciso se valer dos mesmos instrumentos utilizados por promotores e juízes italianos: tanto a prisão preventiva como método para estimular delações premiadas quanto o vazamento para a imprensa de dados da investigação, a fim de angariar apoio popular para a operação. Isso, porém, podia, “no máximo, interromper o ciclo ascendente da corrupção”, pois, na visão do Moro de 2004, o combate principal consistia em atacar as causas estruturais do problema. Segundo ele, sem reformas profundas que resolvam problemas relativos à ineficiência da atividade pública, às relações de clientelismo e à complexidade das regras e processos, não será possível evitar que, após o fim de uma ampla investida judicial, “o mercado da corrupção se expanda novamente”.
Por esse motivo é difícil entender tamanho entusiasmo em reproduzir a Mãos Limpas no Brasil, mesmo não havendo por aqui nenhuma iniciativa de reforma estrutural no horizonte. Na época em que Moro escreveu esse artigo, o promotor mais famoso da operação italiana, Antonio Di Pietro, depois de migrar para a política, foi rapidamente derrubado por investigações e denúncias de corrupção, que, apesar de contestadas, o levaram da máxima popularidade ao ostracismo político. Também no México fracassou o combate à corrupção empreendido pelo governo de Vicente Fox a partir de 2000, com medidas que contavam com forte apoio popular. Pouco a pouco, esmoreceu o otimismo trazido por sua eleição – selando o fim da longa hegemonia do PRI (Partido Revolucionário Institucional), que ficou 71 anos no poder –, e Fox entregou a Presidência em 2006 em meio a escândalos.
Uma das questões discutidas pelos diferentes autores reunidos no livro Corruption and Democracy in Brazil (Corrupção e democracia no Brasil, organizado por Timothy J. Power e Matthew Taylor) relaciona-se com os problemas causados, no longo prazo, por operações policiais e judiciais feitas em larga escala e com grande visibilidade.
Um dos problemas é que, com o tempo, tende a diminuir o apoio público a essas operações, bem como o interesse das pessoas pelo tema da corrupção. Outro é a tendência de politização dos agentes envolvidos e da própria agenda de combate à corrupção. Um terceiro problema é que elas criam nos cidadãos a impressão de que, como se diz, “para acabar com a corrupção, basta ter muita vontade política”. Na prática, a soma disso tudo inviabiliza a construção de um caminho institucional sólido para o combate à corrupção, ou seja, a aprovação de reformas estruturais e o fortalecimento dos sistemas de prevenção, fiscalização e punição. Tarefas que dependem também do envolvimento da sociedade civil, que não pode achar que tudo se resolverá da noite para o dia.
Outra consequência do alongamento excessivo de operações de impacto como a Lava Jato é fomentar a ilusão de que o Judiciário deixou de ser apenas uma peça relevante e se tornou o protagonista da luta contra a corrupção. Pior ainda: é produzir a fantasia de que há verdadeiros salvadores da pátria entre os agentes da Justiça.
Essa idealização de personagens só pode impactar negativamente o próprio combate que se trava, como mostram as reflexões dos autores de Corruption and Democracy in Brazil. Em primeiro lugar, porque enfraquece a dimensão institucional do problema da corrupção, fazendo com que a esperança e confiança sejam depositadas em certas pessoas. Em segundo, porque, ao fomentar a ideia de que essas pessoas bastam para tudo melhorar, nenhuma mudança é promovida no sistema político. Em terceiro, porque o acúmulo de exposição e poder em determinados agentes públicos pode levá-los, por vaidade, ganância ou simples pressão, a se afastar do estrito cumprimento de seus deveres funcionais.
Não é possível deixar de lado o debate sobre que futuro – em termos de carreira, poder e recursos financeiros – seria moralmente adequado aos membros da Lava Jato. Delegados e promotores ligados à operação que migraram rapidamente para o setor privado ou foram contratados como palestrantes passaram a ser questionados a respeito de suas ações terem como propósito agradar os provedores de alguma fonte adicional de renda. O próprio ex-juiz Sergio Moro passou a ser interrogado se não teria, na condução da Lava Jato, feito cálculos políticos com vistas a obter futuros benefícios. Cada um pode dar a resposta que quiser a essas perguntas, mas a própria dúvida, por si só, demonstra o potencial de politização que acompanha todo o processo.
A crença de que a salvação do país virá por meio de agentes “técnicos” concursados drena os esforços políticos de fiscalização e correção da classe política, a qual se tem a sensação de que é possível “dispensar” em favor de corajosos tecnocratas. Esse movimento induz ao seguinte paradoxo: ao confiar nesses tecnocratas para controlar o sistema político, acaba-se criando incentivos para a politização deles e para o seu ingresso na política, em detrimento do exercício da função técnica. E, quando a técnica se torna um trampolim para a política, ela perde a legitimidade e a razão de ser.
No longo prazo, essa politização tende a ser fatal para a reputação do Judiciário e do Ministério Público, que dependem primordialmente da percepção de que seus agentes atuam movidos por razões não políticas (e muito menos partidárias), uma vez que sua função é cumprir rigorosamente o direito.
Além disso, a politização da pauta da corrupção estimula o discurso populista, que promete combatê-la com soluções rápidas e fáceis. Grupos oportunistas tendem a ganhar espaço e poder ao propagarem que são capazes de resolver a corrupção. E não há área mais ao alcance de populistas que o direito penal: criar novos crimes, aumentar penas ou promover medidas de endurecimento do sistema contra corruptos. O acesso é fácil porque as medidas não custam caro aos cofres públicos e o retorno é eficaz, pois os cidadãos, em seu clamor por justiça, se sentem em parte atendidos por elas.
O populismo penal é duplamente perverso. De um lado, oferece uma falsa solução ao problema ao se concentrar na penalização como saída para a corrupção. De outro, enfraquece a dimensão transformadora da pauta, que poderia levar a mudanças estruturais. Criminalizar é desistir da regulação, é abrir mão do trabalho de criar a engenharia institucional capaz de asfixiar a corrupção. A politização da pauta da corrupção faz também com que fique atrelada às disputas partidárias de ocasião e reduz o espaço para os debates técnicos necessários para lidar com um problema tão complexo.
O pacote anticrime ilustra bem o argumento. O projeto de lei elaborado sob os cuidados de Sergio Moro, ministro da Justiça e Segurança Pública, transformou-se, após alterações no Congresso, na lei nº 13964, sancionada pelo presidente em 24 de dezembro último. É uma lei, diga-se de passagem, dedicada integralmente ao sistema de punição, negligenciando a dimensão preventiva. Dentre as suas inovações, a mais polêmica diz respeito à criação da figura do juiz das garantias – que deverá cuidar das atividades de investigação e coleta de provas, mas não julgará. Como não fazia parte do projeto original de Moro, a novidade passou a ser criticada publicamente por ele, e discussões sobre supostos ataques à Lava Jato se sobrepuseram a uma análise mais séria a respeito das implicações técnicas e jurídicas dessa recém-criada figura do direito no país. Pouco importou, inclusive, que os primeiros debates sobre a relevância desse juiz das garantias para o sistema penal brasileiro sejam bem anteriores à própria Lava Jato. Em São Paulo, desde 1985, foram instituídos juízes dedicados exclusivamente ao controle da investigação, que não julgam os casos criminais. E, desde 1990, os tribunais superiores foram autorizados a ter em seus quadros “juízes instrutores” ligados aos ministros. O próprio Sergio Moro exerceu a função de juiz instrutor no STF, ligado à ministra Rosa Weber, durante o julgamento do mensalão, em 2012.
A politização da Lava Jato foi tão avassaladora que quase todo debate legislativo e judicial sobre direito penal nos últimos anos passou a ser discutido como algo “a favor” ou “contra” a operação deslanchada em Curitiba – e nem mesmo delegados, promotores e magistrados que nela atuaram deixaram de participar da discussão pública.
Essa politização nubla o debate sobre os reais problemas de fundo e mina a reputação das demais instituições envolvidas, como o Supremo Tribunal Federal. O STF passou de suposto apoiador da Lava Jato, entre 2015 e 2017, a instituição suspeita de não apoiar a causa anticorrupção, em 2018, e, finalmente, a tribunal que desfere golpes fatais contra a operação, em 2019.
Esses golpes foram três. O primeiro foi a decisão de que as investigações e os processos envolvendo crimes eleitorais não poderiam ser conduzidos pela Justiça Federal, mas apenas pela Justiça Eleitoral. Com isso, tirou da Lava Jato todos os principais investigados políticos (já que quase todos estavam envolvidos com caixa dois, que é um delito eleitoral). O segundo: a determinação de que réus delatados devem apresentar alegações finais depois dos réus delatores – o que pode vir a anular algumas sentenças da Lava Jato. O terceiro: a declaração de inconstitucionalidade da prisão em segunda instância – uma reversão do posicionamento tomado pelo STF em 2016, no auge da operação.
Aos olhos dos membros da força-tarefa da Lava Jato, todas essas decisões representam “retrocessos” ou “ataques” à operação. Eles agem como se ignorassem que o Supremo apenas aplicou regras e princípios elementares do direito penal à análise dos casos e que tais decisões poderiam ser revertidas, caso o Congresso Nacional aprovasse modificações nas leis de processo penal. Em outras palavras, especular que o STF esteja atacando a Lava Jato é um modo de desviar a atenção do fato de que os próprios juízes e promotores da operação ignoraram as interpretações clássicas do direito durante os processos, pois resolveram correr riscos, confiando na popularidade de sua causa.
A bem da verdade, é importante reconhecer que o próprio STF pode ser considerado culpado por fomentar a narrativa que fala de ataques e golpes à Lava Jato. O STF implodiu a possibilidade de ser qualificado como instituição que simplesmente segue a lei. O notório individualismo dos seus membros, que os leva a mudar de posição conforme o ministro sorteado para decidir, dissemina a impressão de que tais decisões variam conforme a opinião política – e não por razões técnicas. Mesmo quando o tribunal agiu coletivamente chancelando a bandeira “lavajatista” (entre 2015 e 2017), ele o fez por meio de decisões heterodoxas e inusitadas, dificilmente justificáveis pela interpretação do direito, pois largamente distanciadas do conteúdo das leis e das convenções jurídicas. São casos exemplares dessa época a prisão do ex-senador Delcídio do Amaral (que se deu fora dos casos explicitamente previstos na Constituição) e a suspensão do mandato do ex-deputado Eduardo Cunha (uma interferência judicial em mandato eleitoral que ninguém considerava possível após a Constituição de 1988).
Se a interpretação do direito é submetida à conjuntura, ela pode muito bem ser percebida como política. Ou seja, abre-se a possibilidade de perguntar ao STF por que os ministros estariam seguindo a lei agora e por que optaram por não fazê-lo em outras ocasiões. Essa é uma acusação justa, mas não é suficiente para entender os problemas na atuação do STF entre 2015 e 2019. Problemas que se devem não tanto ao ativismo ou à politização, mas a algo que chamo de “catimba constitucional”. Tenho usado a expressão para explicar este tipo específico de conduta defensável dos ministros, que (sem violar a lei) parecem praticá-la contra os valores que deveriam guiar a ação de um magistrado. É uma falta de fair play da parte dos ministros, que mina a legitimidade da sua ação.
A história de ascensão e queda da confiança dos cidadãos no STF é ilustrativa de como a politização pode alavancar o poder ou destruir a capacidade de atuação de uma instituição de controle. Quando os debates técnicos passam a ser totalmente subordinados aos interesses conjunturais da política, a solução de problemas reais fica prejudicada. É por isso que a politização de operações como a Lava Jato pode ao longo do tempo atrapalhar o movimento do combate à corrupção.
Desde a prisão de Luiz Inácio Lula da Silva, em abril de 2018, não houve mais nenhum dia espetacular na série de ações de mandados de busca e apreensão, delações premiadas e prisões da Lava Jato. Apesar disso, a operação continua. E, como não planejou seu próprio encerramento, vai definhando aos poucos, em meio ao desgaste provocado por sua profunda politização. Como sua rotina na vida brasileira é apenas uma sombra do que já foi, talvez já se possa pensar em qual será seu legado.
Seus protagonistas sempre pareceram cegos à primazia que se deve dar ao esforço de prevenção à corrupção, bem como aos riscos da politização longa e midiática. Sobre tudo isso havia evidências de sobra na experiência internacional e na literatura. Como explicar a insistência de Sergio Moro e companheiros em escolher o caminho que tomaram, com tantos riscos e prejuízos?
Há fatores comuns à formação e atuação dos juristas brasileiros que podem explicar essa cegueira. Em geral, os juristas são formados para lidar habilmente com processos, mas não para se envolver em demasia com problemas de desenho institucional e engenharia regulatória. Assim como para um martelo todo obstáculo é um prego, para o jurista os problemas da sociedade são resolvidos pelo Judiciário. Nesse sentido, é natural que qualquer juiz comprometido com a ideia do combate à corrupção se sinta estimulado a fazê-lo pela via judicial.
Porém, há algo de muito específico nessa cegueira: a intensa exposição pública e politização da Lava Jato e de seus membros. A partir do momento em que um imenso número de pessoas diz que você está fazendo a coisa mais importante para o país, é difícil acreditar no contrário. É como se a Lava Jato fosse um caminhão que, a partir de certa velocidade, não tem como mudar de rumo ou parar sem capotar.
Apesar disso, não se pode pôr de lado os méritos da operação, que, de maneira inédita, tornou possível punir membros da elite política e financeira por agirem fora da lei. É um avanço significativo, tanto mais em um país onde a Justiça reserva a punição sobretudo aos mais desfavorecidos. Outro mérito da operação foi desestabilizar pactos delinquentes que faziam parte da nossa rotina política.
Acredito que, no panorama geral da história, a Lava Jato precisará ser compreendida como um tipo de curto-circuito ocorrido nos sistemas político e judicial do país. E não há nisso nenhuma conotação pejorativa. É um curto-circuito porque, em razão de seu potencial desestabilizador, não tem como ser incorporada ao funcionamento ordinário desses sistemas. Mas a operação também revelou defeitos estruturais da vida política brasileira que foram negligenciados – e nos impele a corrigi-los, sob pena de ocorrer uma pane geral. Ela colocou na mesa temas que simplesmente não podem mais ser deixados de lado e que dizem respeito ao financiamento eleitoral, ao sistema de contratações públicas, ao modelo de prerrogativas, independência e imparcialidade do Ministério Público e do Judiciário.
A Lava Jato forneceu aos brasileiros uma espécie de ilusão: de que levaria o país rumo a um futuro sem corrupção, no qual reinaria a completa honestidade política. A realidade, entretanto, além de mais complexa, é também decepcionante. Após tantos anos de notícias bombásticas, de discussões acaloradas, nada parece ter mudado radicalmente no Brasil: não parecemos estar em novo patamar em relação à corrupção.
Se durante a Presidência de Lula ocorreu o mensalão do PT e uma série de desvios revelados pela Lava Jato, também foi durante o governo dele que uma autonomia sem precedentes foi dada a órgãos de investigação, como o Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Essa autonomia gerou condições para o desenvolvimento da própria Lava Jato. Jair Bolsonaro, por seu lado, tenta evitar ao máximo o “toma lá, dá cá” partidário, mas mantém próximo de si familiares e subalternos suspeitos de envolvimento com a milícia e desvios de verba pública. Talvez seja esse o motivo por que o Brasil caiu de posição no ranking de percepção da corrupção, realizado pela Transparência Internacional, em que atualmente ocupa a 106ª posição entre 180 países avaliados. Tendo em vista tudo que a Lava Jato prometeu, mesmo a vitória do antipetismo na eleição presidencial de 2018 parece hoje uma conquista pequena. Imagino que poucos “lavajatistas” se atrevam a confessar que suspeitam ter pagado um preço alto demais ao promoverem a vitória de Bolsonaro. E tudo indica que 2022 não lhes trará qualquer redenção, exceto se Moro concorrer à Presidência – e for eleito.
A Lava Jato não produziu a superação dos problemas de corrupção no país. O seu principal legado é outro: demonstrar de maneira escancarada a precariedade e fragilidade de nossas instituições. Não é uma lição fácil de digerir, e na verdade pode ser devastadora, como todo momento de autoconhecimento.
A grande porção de otimistas de ontem pode vir a constituir uma população de céticos no futuro – céticos em relação à Justiça, à democracia e à nossa comunidade política como um todo. A decepção coletiva e a sensação de fragilidade do sistema estão longe de serem inofensivas, pois a crença na qualidade da democracia e a confiança nas instituições são pré-requisitos para a estabilidade do regime. Uma democracia que não conta com a confiança ou a estima da maioria da população está por um fio, vulnerável aos ímpetos de um tirano qualquer. O tempo dirá se o curto-circuito da Lava Jato foi fatal para o nosso sistema político ou se ofereceu aos brasileiros a oportunidade para repará-lo de suas falhas mais graves. A herança da Lava Jato ainda está por ser construída.
RUBENS GLEZER
Doutor em filosofia e teoria do direito (USP), professor e coordenador do Supremo em Pauta da FGV Direito SP.
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