O impeachment atormenta analistas. Diferente de sistemas parlamentaristas, onde se pode remover, sem maiores rapapés, o chefe do Executivo, uma Constituição presidencialista estipula que a destituição de presidente ocorra em virtude de crime de responsabilidade. E esse julgamento deve se dar numa Casa regida pelas paixões e interesses da competição eleitoral, não pelo desapego e serenidade que a aplicação da lei exige.
O Parlamento, instituição constituída pela lógica da barganha, deveria, nesse caso único, funcionar pela lógica da justiça. Pedimos que deputados e senadores ajam como juízes e ignorem a eleição de amanhã. Para encerrar o imbróglio entre os que ressaltam o aspecto jurídico e os que destacam o caráter político do impeachment, resolvemos classificá-lo como instituto “jurídico-político”. Um acordo russomanniano: confuso para ambas as partes.
Não pergunte o que isso significa porque não tem quase nada resolvido. Nem na prática, muito menos na teoria (transtornada com a prática). O debate público sobre o impeachment de Jair Bolsonaro tem promovido o encontro de três figuras.
O cidadão indignado na torcida, perguntado se deve haver impeachment, responde “claro, tomara” (um tipo de “wishful thinking”). O analista político pondera se há condições conjunturais que galvanizem o impeachment. Às vezes, não passa de um erudito chutismo (chamemos de “chuteful thinking”). Vem o jurista e avalia se há crime de responsabilidade. Algumas declarações moram na fronteira do achismo ( “achoful thinking”, se me permitem).
A situação piora quando os três personagens se fundem num só e as muitas perguntas político-empíricas (se há apoio, se as condições devem estar dadas ou podem ser criadas, se as consequências serão positivas ou traumáticas, se eventual derrota fortalecerá Bolsonaro etc.) passam a interferir e a esvaziar a pergunta jurídico-normativa (se há crime).
O componente jurídico desse híbrido “jurídico-político” vira peça decorativa e o debate criterioso sobre crime de responsabilidade acaba interditado. O jurista se deixa calar pelo cientista político. A pergunta jurídica evapora e convertemos o impeachment em voto de desconfiança. Disfarçamos a prática parlamentarista por meio dessa sangrenta e espetacular burocracia de um impeachment.
O disfarce produz outra consequência perversa. Políticos se aproveitam do rebaixamento da pergunta jurídica e, quando indagados sobre a existência de crime, qualquer “acho que não” passa impune na esfera pública. Com base na opinião vulgar, justifica a não abertura do processo e ainda alega que a razão é jurídica.
A mais intrigante especificidade política de um impeachment está aí: ao contrário de um promotor ou de um juiz, que não podem não processar um crime comum, exceto por razões jurídicas, a Câmara dos Deputados pode decidir que um processo por crime de responsabilidade não é conveniente, mesmo havendo grande consenso sobre o crime. Ao invocar um palpite jurídico qualquer sobre o crime, tentam se eximir da responsabilidade política pela inércia.
O procedimento da Câmara dos Deputados, ainda por cima, dá ao seu presidente o poder de, à revelia do plenário, bloquear o impeachment. E passamos o último ano sem poder escrutinar publicamente crimes de responsabilidade de Jair Bolsonaro com base no “acho que não” de Rodrigo Maia. Arthur Lira não hesitará em usar do mesmo expediente. O argumento jurídico virou uma pechincha.
Antes de julgar e punir, investigar e argumentar. Temos sido sonegados dessa oportunidade elementar.
*Conrado Hübner Mendes é professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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