No início da pandemia era comum ouvir gestores e formadores de opinião suscitando o dilema: salvar vidas ou salvar a economia. Falso ou verdadeiro, o fato é que esse dilema foi pulverizado com o desenvolvimento das vacinas. A vacinação em massa é a um tempo a solução para salvar o maior número de vidas e acelerar a retomada econômica.
Segundo estimativas da consultoria LCA reveladas pelo Estado, na mais otimista das hipóteses, se o Brasil vacinasse num ritmo similar ao de Israel – o país mais avançado na imunização –, cobrindo 70% da população até junho, o PIB poderia crescer até 7,5% neste ano. Se esse patamar for atingido em dezembro, o crescimento deve ficar entre 3% e 3,5%.
Mas mesmo essa hipótese é otimista. A incompetência e a desídia do presidente Jair Bolsonaro e seu intendente no Ministério da Saúde, Eduardo Pazuello – que não apoiam as medidas de prevenção e os tratamentos no sistema de saúde –, são tão virulentas que estão infectando mesmo o sistema de imunização brasileiro, um dos mais reputados do mundo.
A campanha de vacinação no Brasil já começou com atraso, quando mais de 50 países haviam iniciado a imunização. “O que trava a vacinação no Brasil é a inércia do governo federal, que poderia ter comprado mais doses”, disse o fundador da Anvisa, Gonzalo Vecina. Não bastasse a escassez de doses disponíveis, duas semanas depois, somente 22% delas haviam sido aplicadas, e os números revelam disparidades nos ritmos de vacinação no País.
Secretários de Saúde apontam que o número limitado de doses e a falta de clareza sobre o tamanho das remessas dificultam o planejamento. Além do risco de interrupções na vacinação, prejudicando a aplicação tempestiva da segunda dose, a escassez, aliada a falhas de logística, pode provocar o pior dos mundos: a combinação de uma imunização irrisória com a ilusão da imunização, levando muitas pessoas a relaxar as medidas de prevenção. E o pior é que uma nova cepa do vírus, mais contagiosa e possivelmente mais letal, se dissemina pelo País.
O trágico é que à epidemia de covid-19 se sobrepõe uma epidemia de desinformação cujo foco mais deletério é o Palácio do Planalto e cujo exemplo mais emblemático é a campanha pelo tratamento precoce (com cloroquina ou outras drogas), para o qual não há comprovação científica. Recentemente, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Luiz de Britto Ribeiro, acusou aqueles que alertam sobre os riscos desse tipo de campanha de “politizar” a saúde sem conhecimento de causa. Mas uma pesquisa da Associação Médica Brasileira (AMB) mostra que a arrasadora maioria dos médicos (quase 80%) reprova a atuação do Ministério da Saúde.
Entre os quase 4 mil médicos ouvidos pela AMB, 32% se queixam da falta de profissionais; 27%, da falta de diretrizes e orientação; 20%, da falta de leitos; 16%, da falta de materiais de proteção; e 11%, da falta de medicamentos. Não bastasse a exaustão provocada por um combate sem tréguas contra o vírus, mais de 9 entre 10 médicos declaram que seu trabalho é prejudicado por interferências de fake news (do tipo que Bolsonaro promove ostensivamente), como o descrédito da ciência, a dificuldade de os pacientes aceitarem prescrições clínicas, o desprezo às medidas de isolamento ou a pressão para que sejam receitados medicamentos sem eficácia comprovada.
Não à toa, em toda a gestão de Pazuello a aprovação à atuação do Ministério da Saúde se manteve na casa dos 16%, quando à época de Luiz Henrique Mandetta (defenestrado por Bolsonaro justamente por se recusar a adotar protocolos sem comprovação científica) chegou a 72%. O descrédito se traduz em desesperança: se 99% dos médicos acham que deveria haver mudanças na Saúde do Brasil pós-pandemia, 73% não creem que os gestores e autoridades passarão a tratar as fragilidades do sistema de forma mais profissional e prioritária.
Mesmo que o presidente e seu intendente não venham a responder por sua incúria, quando forem convocados pelo inexorável Tribunal da História, não será pela falta de testemunho dos médicos que escaparão à condenação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário