quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

MILITARES, RETORNEM PARA OS QUARTÉIS. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO EXIGE

Adilson Paes de Souza, EL PAÍS

Causou repulsa, decepção e vergonha a fala do general Villas Bôas, que revelou a movimentação e o concerto, entre os oficiais do Alto Comando do Exército brasileiro, na elaboração do texto publicado no tuíte do comandante, pouco antes do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), do habeas corpus do presidente Lula, em 2018. Não há como relativizar. Houve pressão e, com isso, houve intromissão descabida e indevida do Exército brasileiro no STF. Cabe a ele tutelar as decisões da nossa Suprema Corte? Numa democracia, não!

Após a publicação do seu livro de memórias neste ano (General Villas Bôas: conversa com o comandante”, organização Celso Castro, FGV Editora), é mais do que óbvio haver repercussão. Houve reação do ministro da Corte Edson Facchin, um tanto tardia (demorou três anos!). Outro oficial do Exército, agora na reserva, afirmou que jamais teria a força de intimidar ministros. Mas o STF se acovardou — exceção feita ao ministro Celso de Mello — e houve, sim, a pressão dos militares. A ordem dada foi para mandar Lula para a prisão e pavimentar o caminho da eleição de Jair Bolsonaro. Foi golpe de Estado. Gabriel Naudé ensina que o bom golpe é dado sem barulho, sem tanques e canhões nas ruas, quando reina a aparente normalidade. Foi bem assim que ele aconteceu (ver Consideraciones políticas sobre los golpes de Estado, Instituto de Estudios Políticos. Caracas).

Li o livro do general. Ele fez referência a veículos de comunicação dominados pelo politicamente correto (sabe Deus o que isso significa!?), que tratam dos assuntos com “enfoque desconectado da verdade”; fez alusão às “formas contemporâneas de imperialismo movidas pelo grande capital, corporações, organismos internacionais e as ONGs” ―delírio. Tece largos elogios ao ministro Ricardo Salles: “o nosso destacado e eficiente (sic) ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que corajosamente, desde que assumiu sua pasta, vem lutando para desmontar estruturas aparelhadas, ineficientes e corrompidas, que criaram um ambiente favorável à dissipação de recursos financeiros, sem que se produzissem os efeitos pretendidos.” Absurdo.

Interessante pontuar que não houve, até agora, um único comentário do general sobre a gastança de dinheiro público, pelas Forças Armadas, na compra de grande quantidade de leite condensado, chiclete, picanha, lombo de bacalhau, uísque 12 anos etc etc etc, com suspeitas de superfaturamento. Mas em seu livro, a sua preocupação era outra: “Me preocupa uma eventual volta ao poder pela esquerda” ―Perigo! Atenção para a tutela da democracia de acordo com os que os militares exigem. “Estamos carentes de valores universais, que igualem as pessoas pela condição humana, acima da classificação aleatória que se lhes quer atribuir”, descreve Villas Bôas. Mais um absurdo, como se o ser humano não fosse distinto, plural ―querer igualar (ou nivelar) as pessoas pode significar traçar um perfil padrão, onde todos devem caber. Perigoso ―eugenia?

Sobre o Governo Dilma, o general disse que “ela nos pegou de surpresa, despertando um sentimento de traição em relação ao Governo. Foi uma facada nas costas”, em referência à Comissão da Verdade que trataria dos crimes cometidos contra civis durante o regime militar (1964 -1985). Mais um absurdo. É essa a fala e a postura que se espera de um comandante, que devia obediência e lealdade às autoridades constituídas? Evidente que não! Se o comandante fala e age assim, o que pensar dos subordinados? E para os que não são subordinados também! A fala do general serviu de inspiração para o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) fazer um show de arbítrios e horrores, com direito ao AI-5, à ditadura, ameaças e tudo.

Outro general, famoso pelos seus desacertos, causa espanto e indignação. Me refiro ao general Eduardo Pazuello, empossado ministro da Saúde e tido como um expert. Uma sucessão de erros e de mentiras brota de sua gestão. Uma subserviência, no mínimo constrangedora, ao presidente, que causa vergonha e os tornam cúmplices do caos instalado. Eles são corresponsáveis pelas mortes advindas da pandemia.

Sou policial militar, aposentado desde 2012. Cheguei até o posto de tenente coronel. As estruturas do Exército e das polícias militares são semelhantes, desde 1969, então fico a vontade para criticar. Eu tenho vergonha de ver oficiais com essa forma de pensar e de agir, me deparei com alguns deles durante a minha carreira. Eles não inspiram confiança, passam um ar de intelectualidade, de superioridade e, até mesmo, de arrogância. Veja o que se tornou o Ministério da Saúde, com tantos militares, um quartel e um exemplo de péssima administração e de incompetência.

Muitos dizem estar preocupados com seus subordinados, mas não estão. Pensam neles mesmos. Repito, tive o desprazer de conviver com oficiais desta natureza. Não foi nada bom. O pior é que tem gente na instituição que acredita neles. Quando algo dá errado, esses seguidores são abandonados à própria sorte. Vi isso na polícia, quando subordinados eram estimulados a praticarem determinadas ações e abandonados. Na cultura militar o superior hierárquico deve comandar servindo de exemplo. O general Pazuello serve de exemplo para quem? Veja o que Bolsonaro está fazendo com ele. Com o perdão da palavra, que vergonha!

Os militares, gostem ou não, devem obediência irrestrita à Constituição federal. Na democracia o poder emana do povo, que não precisa ser tutelado por pessoas fardadas; aliás, esta tutela era bem típica na ditadura. O conceito de democracia controlada (ou domesticada), tão caro à Doutrina de Segurança Nacional, era o que valia, como mostra a obra A ideologia da segurança nacional – o poder militar na América Latina (Joseph Comblin, Civilização Brasileira, 1978) Pelo visto, ainda vale. Por muito tempo senti na pele a desconfiança que as pessoas nutriam pelos militares. Situações nada agradáveis. As revelações do general Villas Bôas e a atuação do general Pazuello demonstram que elas estavam com a razão.

Militares, cumpram os papéis que lhes são destinados pela Constituição federal; não queiram ser mais do que lhes são reservados. Façam por merecer a confiança do povo, único titular do poder. Os danos a todos e, inclusive, a todos vocês, serão imensos. Retornem para os quartéis. Meia volta, volver! O Estado democrático de direito exige.

Adilson Paes de Souza é tenente coronel aposentado da PMSP, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e mestre em Direitos Humanos

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