O fim das férias de poder do Centrão e a resiliência do pensamento autoritário no Brasil são alertas para quem acredita que as instituições estão funcionando e que farão a contenção das rupturas antidemocráticas que devem emergir de dentro para fora nos próximos meses.
Em setembro de 2019, o filósofo Marcos Nobre, presidente do Cebrap, disse que fevereiro de 2021 significaria uma profunda inflexão na institucionalidade democrática do país, quando várias das agendas antidemocráticas promovidas por Jair Bolsonaro seriam viabilizadas por dentro e com a anuência das próprias instituições. Com o término das férias de poder do Centrão e a eleição de seus integrantes para as Presidências da Câmara e do Senado, tal previsão mostra-se agora mais do que nunca acertada e preocupante.
Arthur Lira e Rodrigo Pacheco são de partidos com DNA governista e cuja árvore genealógica encontra na Arena, partido de sustentação do regime militar de 1964, uma raiz comum ao universo simbólico e aos valores que movem Bolsonaro. Não há grandes oposições e, no freio de acomodação que o presidente precisou fazer em sua gestão, o Centrão retoma o protagonismo nos rumos do país. Quem precisou se adaptar foi Bolsonaro. O bloco é exímio na arte da realpolitik e, quando o general Ramos levou a cabo o projeto estratégico de governabilidade do governo e se aproximou do Centrão, se deparou com atores políticos pragmáticos e vorazes pelo poder.
Ao que tudo indica, pautas caras ao bolsonarismo, como a ampliação do porte de armas e munição e do excludente de ilicitude, não encontrarão resistência apaixonada, e o desafio será, principalmente, o de compor diferentes grupos de pressão da base aliada. Na segurança pública, isso significa encontrar um projeto factível que seja aceito por delegados, agentes de polícia, praças e oficiais. Cada categoria profissional tem demandas específicas e, não poucas vezes, contraditórias entre si.
Os projetos de Leis Orgânicas das Polícias Civil e Militar, por exemplo, devem avançar e, nesse caso, é importante ficarmos alertas para uma armadilha analítica. O conteúdo corporativista revela tão somente o valor de face dos projetos e explicita demandas represadas desde 1988. Mas, no diálogo nacional, temos que ter em mente que o valor de troca de tais projetos é a adesão e a centralização de poder. É dessa troca que os policiais conseguirão forças para fazer avançar uma reforma das polícias que, até aqui, é um tabu.
Ainda mais quando a oposição se afasta cada vez mais dos policiais. O PT deu provas do quanto está em dissonância com tais pautas. Ao invés de propor um projeto alternativo, o partido insiste em se afastar dos policiais e entregá-los no colo do presidente. Em um erro de cálculo imenso, o governador Rui Costa, da Bahia, esperou quase um ano para, em janeiro, protocolar no Supremo Tribunal Federal uma ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade – que questiona o fim da prisão disciplinar de policiais militares. Bolsonaro se deu ao trabalho de apenas sancionar a referida lei, pois ela foi iniciativa dos praças das PMs. Em um ambiente de adesão, o PT surge como o algoz que tiraniza os policiais, enquanto o presidente passa a imagem de que os valoriza e compreende.
Bolsonaro tem tentado trincar consensos civilizatórios e fazer da sua narrativa a que dá o tom do debate público. Tudo feito às claras e na nossa frente. Em janeiro de 2019, o governo federal tentou criar um controle de entidades da sociedade civil, mudar a LAI (Lei de Acesso à Informação) e rapidamente pôs em prática a sua política de flexibilização de normas e decretos de controle do armamento da população civil. O pacote “anticrime”, com a proposta de ampliação do excludente de ilicitude para policiais como eixo estruturante, representou o amálgama perfeito entre o vale-tudo lavajatista e o discurso bolsonarista de morte. Na área ambiental, mesmo com muita pressão internacional, Bolsonaro vem reduzindo o envio de membros da Força Nacional de Segurança Pública para áreas indígenas e/ou com conflitos ambientais e o uso de tropas das Forças Armadas em operações de Garantia da Lei e da Ordem agora em 2020. Ao poucos, o discurso de prioridade da segurança foi sendo substituído pelo slogan “mais Brasil, menos Brasília”.
Na relação federativa, o governo tenta se capitalizar junto a policiais do país todo. Há um ano, em fevereiro de 2020, eclodiu o motim do Ceará, com homens encapuzados dizendo-se policiais e obrigando a população cearense a fechar comércios e conviver com um aumento abrupto de mortes violentas. Durante o motim, o ato inconsequente do senador Cid Gomes, que tentou desocupar um batalhão amotinado com uma retroescavadeira e foi baleado pelos policiais, acabou por ter um efeito de autocontenção e fez o Brasil despertar para o risco da “bolsonarização” das polícias e o papel estratégico que essas corporações passaram a desempenhar na quebra da institucionalidade democrática em vários países da América Latina (Bolívia, Chile, Venezuela, Colômbia, entre outros). Como não poderia ter sido diferente, o governo federal foi rápido em defender os amotinados. Bolsonaro disse que se tratava de uma greve, não de um motim, e um coronel da Força Nacional – tropa subordinada ao Ministério da Justiça– chamou os policiais cearenses de “gigantes”.
Uma pesquisa de julho de 2020, realizada pela empresa de dados Decode a pedido do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostrou que o estrago é grande: cerca de 12% dos policiais militares do país que interagem em redes sociais são adeptos de teses antidemocráticas como prisão de ministros do STF e fechamento do Congresso. Nesse processo de tudo mudar para ficar tudo como está, ao divulgarmos algumas análises da pesquisa com a Decode, muitos foram os que publicaram contrapontos críticos por acreditarem que as instituições policiais são sólidas e não causariam rupturas e que, no máximo, policiais de baixas patentes é que estariam cooptados para discursos radicalizados. Eles acreditam que “as instituições estão funcionando”, mas esquecem uma premissa elementar da sociologia política que nos ensina que as bases sociais da política são definidoras dos rumos e sentidos da esfera pública – elas funcionam para quem e para quê?
E por que digo isso? Ainda em 2017, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública publicou um estudo baseado em pesquisa realizada pelo Datafolha que alertava que o medo da violência era um dos principais gatilhos da adesão a valores autoritários e de aceitação de práticas violentas e segregadoras. Em uma escala de zero a dez, a população adulta com 16 anos ou mais atingiu 8,1 de propensão de adesão a tais valores. De lá para cá, quase nenhuma política pública foi formulada para dar conta de tais bases sociais da política e da violência que as marcam.
O fechamento institucional não é visto, assim, como problema a priori, pois “se feito para livrar a pátria da bandidagem e patifaria”, é aceito por parcelas significativas da população. Regras de accountability não são valorizadas, e a tal institucionalidade é operada na lógica do “legalismo autocrático”, conceito formulado por Kim L. Scheppele para analisar a realidade da Hungria. O que, numa perspectiva internacional, significa dizer que, no picadeiro, Bolsonaro imita Trump, mas, nos bastidores, aparado por setores majoritários das polícias e do sistema de justiça, mimetiza Orbán e, agora, com o apoio do Centrão, se fortalece.
Bolsonaro é sintoma de um processo muito mais amplo de reconfiguração da ordem social inaugurada em 1988 com a nossa Constituição e conta com suporte de muitos integrantes das polícias, do Ministério Público e do Poder Judiciário (a decisão do juiz de multar individualmente policiais que estão cumprindo ordens para exercerem o poder de polícia contra madeireiras ilegais é emblemática da adesão a qual me refiro aqui). Ele não é apenas um líder iliberal e populista. Ele é a tradução média das representações sociais da sociedade brasileira, e nunca esteve tão forte politicamente – apesar das críticas que vem sofrendo pela forma como minimizou a pandemia, as mortes e a vacina. Daí os riscos reais e imediatos que estão postos.
Em suma, se olharmos os movimentos em curso desde a posse de Bolsonaro, veremos que os sinais de ruptura por dentro estavam dados e que, para tirar o foco sobre eles, um enorme simulacro político foi criado enquanto as instituições estavam sendo estrategicamente ocupadas e reconfiguradas. Isso ocorreu na Hungria. Esse simulacro espelha o real, mas o mascara e o blinda de pressões. Ele é pautado no diversionismo, na dissuasão bélica, na ameaça conspiratória e na cooptação de integrantes dos braços armados do Estado, sobretudo policiais militares e integrantes do Exército Brasileiro. Qualquer reação precisa partir de um pensamento estratégico de nação, coisa que os militares que costuraram o apoio do Centrão estão mostrando que, ao contrário do que imaginamos, existe de sobra na gestão Bolsonaro.
RENATO SÉRGIO DE LIMA (siga @RenatoSdeLima no Twitter)
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
Nenhum comentário:
Postar um comentário