Algo se moveu em Brasília. Em meio à sensação de caos generalizado – acentuada pela crescente convicção de que o presidente da República, Jair Bolsonaro, é irremediavelmente incapaz de liderar o País em um dos momentos mais dramáticos de sua história –, aparentemente a realidade começa a se impor.
Se são para valer, só o tempo dirá, mas o fato é que as notícias de que o governo federal finalmente comprará vacinas contra a covid-19 e de que o Congresso, com a equipe econômica, impediu manobras ardilosas para furar o teto de gastos em nome do enfrentamento da pandemia mostram que, no limite, o Estado democrático tem seus mecanismos contra a insanidade.
Depois de meses de campanha sistemática do presidente para desmoralizar as vacinas, o Ministério da Saúde prontificou-se afinal a comprá-las. O ministro Eduardo Pazuello anunciou na quarta-feira, dia 3, a assinatura de um contrato para a aquisição de 99 milhões de doses da vacina da Pfizer e também a negociação para a compra de 38 milhões de doses da vacina da Janssen.
O governo havia meses vinha se negando a comprar a vacina da Pfizer, oferecida ao Brasil em agosto do ano passado. Bolsonaro descartara o imunizante dizendo que havia cláusulas abusivas no contrato, como a que isentava o laboratório de responsabilidade por eventuais efeitos colaterais – o que é uma cláusula-padrão em todo o mundo.
Agora, em meio à disparada do número de mortos pela pandemia e ao colapso do sistema de saúde em quase todo o País, situação que ameaça deteriorar ainda mais a popularidade de Bolsonaro – única coisa que lhe importa –, o presidente e seu desastrado ministro da Saúde afinal fizeram o que deveriam ter feito há muito tempo.
Para os brasileiros, pouco importa se Bolsonaro e Pazuello decidiram comprar vacinas por frio cálculo político, ante a pressão crescente da opinião pública e ante a mobilização de governadores e prefeitos para comprar vacinas por conta própria, ganhando pontos com o eleitorado; o fato é que as doses dos imunizantes chegarão ao País e, se forem rapidamente administradas, interromperão a espiral de sofrimento e miséria que tanto aflige os brasileiros.
Do mesmo modo, pouco importa se a PEC Emergencial aprovada no Senado nesta semana está longe de ser a ideal. O importante é que essa medida, que cria as condições fiscais para destravar o auxílio emergencial e outras despesas relativas à pandemia, finalmente deixou a gaveta em que dormitava desde o fim do ano retrasado e agora tramita de acordo com a urgência requerida pelo momento.
Há ainda outro fato relevante: a equipe econômica empenhou-se para desmontar a articulação, patrocinada pelo próprio presidente Bolsonaro, para excluir o Bolsa Família do limite do teto de gastos na PEC Emergencial. A manobra permitiria abrir espaço de nada menos que R$ 34,9 bilhões no Orçamento para emendas parlamentares. Ou seja, era uma maneira de driblar o teto de gastos para aumentar despesas com obras que rendem votos.
A malandragem, que arruinaria de vez a imagem já desgastada do Brasil entre os investidores, foi abortada pouco antes da votação em primeiro turno no Senado.
Assim, a despeito da campanha sistemática do presidente Bolsonaro contra o País, ainda há barreiras para a articulação entre a demência e o oportunismo rasteiro. Não se pense, contudo, que Bolsonaro, de uma hora para outra, vai se tornar adepto da ciência e da responsabilidade fiscal.
Ao contrário, exercitando toda a perversidade de alguém que não teve educação de berço, o presidente, por pressentir que sua reeleição corre risco, dobrou a aposta na incivilidade. Sobre a pressão para comprar vacinas, Bolsonaro discursou: “Tem idiota que diz ‘vai comprar vacina’. Só se for na casa da tua mãe. Não tem para vender no mundo”. E sobre a necessidade óbvia de se adotarem medidas de isolamento para conter o avanço do vírus, Bolsonaro teve o atrevimento de dizer: “Temos que enfrentar nossos problemas. Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?”.
O País fará bem se deixar o sr. Bolsonaro falando sozinho.
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