As empresas de redes sociais, bem como os Estados nacionais, têm tomado medidas que na prática limitam o debate público. Negacionismo, cloroquina, desejo de matar ministros; tudo isso vem sendo cerceado. Devemos nos preocupar pela liberdade de expressões tolhida?
A ciência, e o pensamento humano de maneira geral, precisa do contraditório para progredir. A defesa de hipóteses minoritárias, teses ousadas e mesmo dissidentes é benéfica para o conhecimento. Por vezes, a posição minoritária pode estar certa. Mesmo quando errada, pode ter alguns elementos corretos, ter identificado falhas reais na tese dominante. E, mesmo quando a tese majoritária está correta, a necessidade de defendê-la fortalece os argumentos a seu favor.
Uma das características da real discussão de ideias é que ela se dá longe da pressão popular. Seu objetivo é a verdade (nunca plenamente alcançada), e não a popularidade, o dinheiro ou o poder. Ela se dá prioritariamente entre especialistas e outros interlocutores já familiarizados com a fronteira do conhecimento. Esses são sempre poucos, ao contrário do grande público, incapaz de acompanhar o estado atual da discussão.
Muito diferente dessa discussão abstrata é o debate público, que visa persuadir milhões. Aqui, a força da argumentação pura vale menos do que a habilidade retórica de tocar os sentimentos dos leitores e espectadores.E ele está quase sempre ligado às decisões práticas que a sociedade tomará e que trarão impactos reais.O debate público também ganha com a divergência. É no exercício da discussão que as pessoas aprendem a pensar melhor. E como vivemos numa democracia, é o entendimento imperfeito do público que balizará as decisões da gestão pública.
Ele não se presta, contudo, a resolver divergências intelectuais. A opinião da maioria é um péssimo juiz da verdade de qualquer tese minimamente complexa. Assim, trazer a esse público teses dissidentes incapazes de se sustentar perante especialistas, munidas apenas de artifícios retóricos para promover a adesão sentimental da maioria, é uma prática desonesta.
Não há problema nenhum em se fazer um estudo acadêmico sobre a eficácia da cloroquina ou do uso de máscaras no combate à Covid, caso algum pesquisador julgue-o relevante.
Agora, defender aguerridamente a cloroquina ou atacar as máscaras nas redes sociais e em jornais de grande circulação é desonesto e prejudicial.
Se os principais participantes do debate público não se comprometem a se pautar pelo estado atual da discussão entre especialistas, criam mundos paralelos de desinformação.
O único resultado possível é a polarização da sociedade em grupos cada vez mais incapazes de se comunicar. O conhecimento se perde em meio aos ruídos da política.
No plano do conhecimento, da discussão ideias, a liberdade deve ser total. E não há necessidade alguma de chegarmos a consenso; podemos passar a eternidade discordando, sempre com argumentos melhores, com enorme prazer nessa empreitada.
No plano do debate público, contudo, decisões concretas impactarão a todos nós.
A desonestidade é sempre ruim, mas em momentos de calamidade, nos quais uma crença equivocada pode levar a milhares de mortes, torna-se intolerável. O próprio debate público, sem um chão comum na verdade objetiva, perde sua razão de ser. O cerceamento do extremismo desonesto é bem-vindo.
*Joel Pinheiro da Fonseca, economista, mestre em filosofia pela USP.
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