Por ter tido uma formação trotskista, ganhei um salvo-conduto no limiar da juventude: nunca precisei bater continência a Fidel Castro para provar que não compactuava com o imperialismo. Nós, militantes da IV Internacional, não aceitávamos que as escolhas políticas fossem binárias: isso ou aquilo, preto ou branco. No nosso código, era possível combinar dois combates: um contra exploração capitalista e outro contra a burocracia soviética. Denunciávamos a opressão do capital sobre os “famélicos da Terra” e nos opúnhamos à degeneração totalitária dos Estados operários. A luta contra o Tio Sam não nos obrigava a baixar a cabeça para o Kremlin, Mao Tsé-tung ou as ovelhas com suposta consciência de classe na Albânia.
Enquanto Jean-Paul Sartre olhava para a estampa de Che Guevara e se derretia, anunciando ter encontrado no guapo guerrilheiro o fenótipo do “ser humano mais completo do nosso tempo”, nós, os trotskistas, desconfiávamos. Enquanto os stalinistas faziam do culto à personalidade uma religião e da obediência o suprassumo da virtude, os trotskistas admiravam a capacidade de discordar e a disposição para carregar solitariamente, se necessário, o fardo das próprias convicções. Gostávamos da ideia de revolução, das multidões escorrendo pelas ruas e rompendo as comportas, mas não elogiávamos o enrijecimento do Estado, a transformação de um rebelde em comissário engravatado, a polícia dos costumes.
No começo dos anos 1980, muitos trotskistas (não todos) olhavam para Cuba e viam um satélite da União Soviética – ainda que de órbita expandida. Aos olhos desses admiradores ativos de Leon Trotsky, aos quais devotei minha admiração dissonante, Cuba não era a esperança do socialismo e da liberdade, mas um prolongamento plúmbeo de um poder encerrado em si mesmo. A gente não embarcava. Aquela forma de poder acabaria dando errado, a não ser que fosse, de novo, sacudida por dentro, em outra vaga revolucionária radical, socialista e libertária.
Era assim que eu pensava quando ingressei na casa dos 20 anos. Devo admitir que, como as cabeças humanas também se burocratizam, eu sigo pensando mais ou menos assim até hoje. Só mais ou menos. O diabo comigo é que, além da formação trotskista, tive também uma formação simultânea um tanto boêmia, um tanto cristã, bastante caipira e sentimental. Isso bagunça qualquer coerência, convenhamos. Um militante da IV Internacional é um bolchevique internacionalista, ferreamente disciplinado. Um seresteiro que gosta de namorar acaba traindo essa rigidez principista em melodiosas conciliações impossíveis.
Sim, aconteceu comigo de não gostar do regime cubano, que encarcerou homossexuais, baniu dissidentes e censurou a imprensa e a literatura. Mas aconteceu também de gostar demais, calorosa e apaixonadamente, dos homens e das mulheres que gostavam de Fidel Castro. E como o coração humano é mais ou menos como o desejo das massas, que vai no embalo sem fazer escala em estacionamentos cobertos, o fato é que gosto demasiadamente de todos eles e todas elas até hoje.
Sou a negação da disciplina bolchevique. Estive no Museu da Revolução, em Havana, e quando vi a estátua de cera de Camilo Cienfuegos, em tamanho natural, escalando umas pedras mequetrefes, chorei. Difícil explicar por quê. Talvez por ter visto na imagem de Camilo, ladeado pelo Che, um “homem novo” sem lenço e sem documento, o que me comove. Mas talvez eu tenha chorado porque a estátua de cera guardava um halo do sonho que movia aquele tipo alegre e eu pude vislumbrar, no museu com cara de repartição pública, que o sonho se ressecara em pesadelo imobilizante. As revoluções, como a justiça e os amores, quando tardam, falham.
Não sei se o improvável leitor me acompanhou até aqui. Temo, humildemente, que não. Esse negócio de escrever na primeira pessoa numa página de jornal é uma temeridade. Mas fazer o quê? As coisas são como são e a minha primeira pessoa, inadvertidamente, é uma coisa que é como é, de vez em quando aflora.
Pelo sim e pelo não, se me acompanhou até aqui, o improvável leitor entenderá agora um pouco mais das linhas que nos trouxeram a este ponto final – além do qual existe texto. Os parágrafos acima vieram a propósito dos recentes solavancos na ilha. “Não, não são solavancos”, dizem meus amigos, “são apenas arruaças localizadas de uns poucos sabotadores financiados pelos contras de Miami”. Alguns até distribuíram vídeos no WhatsApp com cenas da manifestação oficial de apoio ao regime convocada pelo herdeiro dos Castros, Miguel Días-Canel. Com isso imaginaram encerrar o assunto: os descontentes são minoria.
Eu não aceito o argumento. A questão terrível em Cuba, hoje, reside justamente no desrespeito aos direitos da minoria. O fato de serem minoritários os que protestam não justifica a censura e a prisão de dissidentes. Que lástima.
O escritor cubano Leonardo Padura, em artigo publicado há duas semanas no site A Terra é Redonda, teve a coragem de fazer a crítica necessária. Ele defende Cuba, repudia o embargo americano, diz que escolheu viver na ilha, mas condena o erro gravíssimo do autoritarismo. Concordo afetuosamente com Padura. Chega de silêncio obsequioso.
JORNALISTA, É PROFESSOR DA ECA-USP
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