A investigação contra Luiz Carlos Cancellier: um caso para não esquecer
O caso do então reitor de Universidade Federal de Santa Catarina, Luiz Carlos Cancellier, investigado e preso antes mesmo de se iniciar qualquer julgamento pela Justiça, foi recentemente revisitado com lucidez e precisão por Fernando Schuler, em sua coluna na revista Veja. As atrocidades cometidas restaram ainda mais destacadas quando postas em contraste com a ambiência de fraternidade e harmonia que os espíritos desarmados vivenciam no período natalino.
Acusado de participar de um cogitado e infundado desvio de R$ 80 milhões na instituição que dirigia, o reitor sofreu severas humilhações, foi acorrentado, submetido a revista íntima, ficou preso por 30 dias em cela de segurança máxima e foi proibido de botar os pés na universidade. Vítima do Estado que o devia proteger, Cancellier, em extremado desespero, acabou se jogando do sétimo andar de um shopping, em 2017.
Toda essa tragédia precisa ser permanentemente relembrada por oferecer uma valiosa e triste oportunidade de refletirmos sobre o desespero de um inocente que veio a pôr cobro à sua própria vida, depois de sofrer a desgraça de ter a sua honra aguda e injustamente destroçada, revelando o que pode acontecer a uma pessoa quando a democracia e seus freios deixam de existir para ela.
A espetacularização da investigação, nesses alienados tempos do devido processo legal midiático, enseja o surgimento desses juristas de arrebiques que, movidos por uma loucura furiosa, expõem o investigado à mídia e à execração pública, transformando-o em réu antes da abertura do devido processo, antecipando o julgamento e punindo e condenando com frieza e crueldade típicas dos regimes de exceção. Sob o pretexto de fazer justiça, fazem justiçamento, ou justiça com as próprias mãos. Desconstroem um dos principais pilares da democracia, que é a garantia dos direitos individuais. Como a observância das fases do processo legal foi desrespeitada, prevaleceu uma equivocada visão particular e subjetiva de um grupo de agentes públicos.
É possível dizer que recaiu sobre o reitor — sendo ele uma autoridade em um país onde é grande a percepção de impunidade — um tipo de vingança não declarada, não assumida, travestida de "rigorosa defesa da lei, doa a quem doer", como se o cumprimento da lei fosse um gesto de heroísmo. O público — entre aturdido, uns, e anestesiados, outros — postado e prostrado diante da TV, é incapaz de perceber que a tragédia da morte é capaz de mostrar o tamanho do equívoco que acontece, inevitavelmente, quando a democracia é trocada por uma covarde valentia, quando o processo legal é substituído por uma cega paixão.
A justiça tardou e falhou para Cancellier, que perdeu seus bens mais valiosos, a reputação em vida e a própria vida, por ele mesmo desfeita, carregando ademais, para os que acreditam, um carma acrescido a ser purgado em vidas que estão por vir. Essa terrível injustiça pesa ainda hoje sobre a família do reitor: o dano é irreparável e, como bem frisou Schuler, o Estado deve aos familiares do reitor o reconhecimento público do erro e a conclusão do caso para que a dúvida — outra punição despótica, de imensa crueldade — deixe de existir e eles possam acomodar a dor da perda na normalidade dos dias.
Ao contrário do justiçamento, o remédio para a impunidade só pode ser ministrado pelos poderes da República. Cabe a eles e somente a eles debaterem em seus plenários e com a sociedade um conjunto de medidas que deem à justiça mais celeridade e efetividade. É o que exige a democracia! Quanto mais o assunto for procrastinado, mais brasileiros entrarão no corredor polonês dos justiceiros de plantão enquanto outros continuarão escapando sorrateiramente pela porta dos fundos.
É preciso estar atento para sempre perceber que o mal que tirou a vida do reitor não foi debelado e ainda circula entre nós como um vírus letal em um ambiente tenebroso.
Cesar Asfor Rocha é advogado, jurista, escritor e compositor. Foi ministro (1992/2010) e presidente (2008/2010) do Superior Tribunal de Justiça, ministro e corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (2005/2007) e corregedor do Conselho Nacional de Justiça (2007/2008). É membro vitalício da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.
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