segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A CRISE DEPOIS DAS URNAS

Hamilton Garcia, Fundação Astrojildo Pereira

As especulações sobre as eleições de 2022 seguem cada dia mais animadas com a estratégia do PT para neutralizar o centro, a entrada em cena de Sérgio Moro, a vitória de João Dória no PSDB, a obstinação programática de Ciro Gomes e a aposta dobrada de Bolsonaro em seu próprio isolamento político. Em meio às movimentações, cresce entre alguns setores a crença de que a saída de Bolsonaro do poder teria o condão de superar a crise por si só, como se ela se limitasse a seu desgoverno – o que não é o caso (vide A Crise e Suas Raízes).

A crise da Nova República se desdobra em dois planos pelo menos: a camada mais superficial dela se encontra no âmbito da governabilidade e pode ser sumariamente definida como o descasamento estrutural entre o governo do Executivo e o do Legislativo, em meio à anomia partidária e à sub-representatividade da Câmara Federal (distorção no peso do voto, compra de votos, partidos de aluguel, excessiva mobilidade parlamentar) que o Centrão, político e jurídico, pretende “resolver” com o semi-presidencialismo.

Já sua camada mais profunda, se assenta no esgotamento do bloco histórico financeiro-patrimonial-corporativo e seu programa liberal de incremento do consumo das famílias sem conexão com o desafio do desenvolvimento nacional – que passou a ser considerado um epifenômeno do mercado livre, à moda oitocentista.

Indiferente a ela, o quadro político-eleitoral segue bem segmentado em termos ideológicos, mas também inclinado ao pensamento mágico, o que garante um grau de incerteza muito grande sobre o itinerário da crise, cujas camadas interagem na sustentação do sistema de dominação. Em outros termos, o programa do bloco histórico em crise seguirá erodindo o país se a neutralização do legislativo não for revertida por uma reforma política radical, que não encontra espaço na polarização populista atual. A solução parece se insinuar fora dela, mas seu resultado no curto-prazo também promete um bom nível de incerteza, como veremos.

Mas, antes de tentar mapear os rumos da crise a partir de cada virtual candidatura vitoriosa, é preciso assinalar que a incerteza eleitoral de 2022 terá um forte componente emotivo, semeado pelos ódios até aqui cultivados nas bolhas dos respectivos espectros ideológicos. Infelizmente, nada faz crer que o esfaqueador esquerdopata de 2018 não possa reaparecer em versão direitopata, por meio de arma de fogo, não obstante os maus resultados colhidos no primeiro caso – ajudando a eleger quem se queria eliminar da disputa.

Seja como for, a crise que estamos experimentando desde 2013, sob o pano de fundo de uma semi-estagnação econômica desde 1980, parece garantida, se não pelo desnorteamento popular, certamente pela resistência tenaz dos donos do poder no interior de seus bunkers na Nova República.

Comecemos o esboço pelo atual mandatário, apesar de suas exíguas chances eleitorais em função da inflação alta, do péssimo desempenho governamental e da perda significativa de apoio popular e nas elites. Um hipotético novo mandato de Bolsonaro seguiria sendo uma composição militar-fisiológica sob o mando orçamentário do Centrão, que poderia mitigar a direção política do bolsonarismo por meio de um semi-presidencialismo de algibeira; o que, por si só, não afastaria o fantasma de um descontrole social em função do esgotamento do modelo econômico – com o qual o bolsonarismo, no fundo, conta para forçar o fechamento político em benefício próprio e de seus sequazes.

No caso de Lula ser o vitorioso, é possível esperar um melhor grau de estabilização da crise a partir de sua testada fórmula de conciliação pluto-populista, que lhe consagrou grande popularidade e quatro vitórias eleitorais consecutivas (2002, 2006, 2010 e 2014), distribuindo grande parcela dos recursos orçamentários à banqueiros, empresários e políticos fisiológicos, enquanto, astutamente, atenuava as dificuldades de trabalhadores e marginalizados sem mexer nos alicerces do sistema.

Sabemos que hoje a situação lhe seria mais adversa, pois não apenas os alicerces estão abalados, como a autonomização parlamentar não cederia facilmente a seus apelos. Neste cenário, o modo lulista de governar dificilmente levaria às reformas necessárias para a reversão da crise, embora haja quem aposte na inteligência intuitiva de Lula e em seu compromisso nacional. As medidas que realmente interessam ao lulopetismo, essencialmente centradas nas necessidades de consumo da grande massa, via importações – e não na produção interna com a (re)montagem das cadeias produtivas geradoras de riqueza e bons empregos –, não colidem, como se evidenciou no passado, com os do sistema parasitário.

Isto ocorre porque o programa consumista, na perspectiva petista de consolidação do poder, seria meramente tático, servindo, na verdade, para abrir caminho para a radicalização do processo de distribuição de renda, que, por sua vez, daria início à conquista da hegemonia política, possibilitando o início do processo de construção do socialismo no Brasil que, como sabemos desde Cuba, de fato, significaria a canibalização do que restou das empresas produtivas do país, rumo à dependência extrema com relação às potências “anti-imperialistas” de plantão – como se vê hoje com a Venezuela em relação à China.

O avanço desta estratégia teria ainda vários nós que não caberiam aqui discutir, todos eles tendentes a abalar nossas já frágeis instituições democráticas, ensejando movimentos revolucionários/contra-revolucionários que, à luz de nossa tradição histórica, tenderiam a levar, em algum momento, à intervenção militar contra o caos e pela manutenção da ordem, sendo provável que tal intervenção assumisse um caráter tópico, como em 1945, embora não se possa afastar a hipótese – à depender do grau de agitação social – de uma refundação à moda de 1930, dificilmente chegando a um 1964 (vide A Questão Militar).

Conscientes disso, setores mais radicais do petismo advogam que tais medidas se articulassem, de partida, à organização de comitês populares, de modo a dissuadir a burguesia de derrubar Lula; o que é visto pela cúpula partidária como um convite ao golpe. Tal perspectiva, embora minoritária hoje, poderia ganhar fôlego em meio ao agravamento da crise e das pressões por reformas estruturais que libertassem o país do parasitismo financeiro-neopatrimonial da Nova República.

Já no caso de vitória de um dos azarões da disputa, em especial Moro e Ciro, e talvez Dória, as chances de governabilidade (sem estelionato eleitoral) estariam depositadas na reversão do atual modelo de governança inaugurado pelo PT com o Mensalão e aprofundado por Bolsonaro no “orçamento secreto”. Para tanto, precisariam promover acordos políticos à chilena, negociando seus programas governamentais com os opositores, ao invés de tentar viabilizá-los pelo rolo compressor da compra de voto parlamentar, o que colocaria parte do Congresso em pé de guerra contra a “perda de prerrogativas”. Neste contexto, no curto-prazo, a crise de governabilidade se sobreporia à crise econômico-social, só podendo ser evitada por meio de um amplo compromisso partidário pela reconstrução nacional nos dois níveis (político e econômico), pacto que a fragmentação partidária e a polarização político-ideológica poderiam inviabilizar.

Supondo que a primeira camada de dificuldades (governabilidade) possa ser transposta pela dramaticidade dos acontecimentos e a força político-moral do vitorioso em 2022 – o que não comporta a vitória de Lula ou de Bolsonaro –, restaria a segunda camada (modelo econômico) e a dificuldade em si da elaboração de alternativas viáveis.

No primeiro caso, as reformas teriam que mirar o poder de veto neopatrimonial do Centrão, cuja força provém da plasticidade política propiciada pelo atual sistema eleitoral (voto proporcional preferencial) e partidário (partidos de aluguel sem responsabilidade política efetiva com a mobilização eleitoral, o autofinanciamento de campanha e a seleção de quadros políticos).

No segundo caso, as medidas necessárias seriam não só mais complexas como atingiriam interesses vitais de grupos econômicos poderosíssimos, para não falar da polarização ideológica, mais antiga e estruturada, opondo liberais e desenvolvimentistas – polarização que só foi quebrada durante a vigência do regime militar, levando liberais ortodoxos como Roberto Campos a promover uma forte política intervencionista do Estado na economia a partir de 1967. Na ausência de tal tutela, a convergência hoje precisaria do reconhecimento, por parte dos liberais, da importância do Estado como planejador de longo-prazo do desenvolvimento nacional, naturalmente com a participação democrática da sociedade e o papel corretor do mercado nas inevitáveis distorções do plano – o que também dependeria fortemente do grau de radicalização adquirido pela crise.

Neste terreno acidentado, Moro poderia tirar proveito de sua moderação, capacidade de diálogo e franqueza de propósitos, enquanto Ciro, deficiente da primeira qualidade, já se prepara exercitando tal diálogo na própria campanha (vide debate com Armínio Fraga), ao passo que Dória parece mais inclinado ao marketing do que à solução de problemas – embora nada o impeça de evoluir premido pela crise. É de se salientar que Ciro é o que tem o melhor diagnóstico do problema econômico, uma vantagem não desprezível num quadro carente de alternativas inovadoras, que só poderão medrar a partir de uma reflexão crítica em relação ao desenvolvimento passado – que esquecido e distorcido pelos neoliberais, nos levou de volta ao atraso político e à dependência intelectual-econômica da qual os PNDs dos anos 1970, em parte, nos havia afastado.

Tal estratégia de choque, na largada do mandato transformador, enfrentaria de cara tenaz oposição do sistema de dominação, tendo que vencer o duplo desafio do diversionismo ideológico e da força dos privilégios adquiridos, que unem o Centrão às elites econômico-financeiras. Em outros termos, a crise aguda, que com Bolsonaro e Lula – e em certa medida, talvez, com Dória – poderia ser postergada pela pouca disposição de ambos em fazer reformas estruturais, no caso de Ciro e Moro se apresentaria imediatamente, pelo motivo oposto, aumentando a percepção dos custos da mudança.

Contrariamente ao senso-comum predominante hoje no eleitorado, a tradição neopatrimonial-financeira que estiola o país, tem em Lula e, em certa medida, em Bolsonaro, seus candidatos preferidos por suas capacidades ilusionistas. Tais preferências, porém, não só esbarram no esgotamento do modelo, como trazem consigo os perigos da desordem no médio-prazo, enquanto as candidaturas de Ciro e Moro tendem a enfrentar estes desafios no curto-prazo, mantendo consigo a iniciativa de jogo e, portanto, aumentando as chances de soluções favoráveis ao país e à democracia.

Isto não quer dizer que as saídas verdadeiramente republicanas (anti-patrimonial-financeiras) não tenham seus perigos, mas que valem a pena corrê-los diante da possibilidade de nos livrarmos democraticamente do antigo regime, vale dizer, sem recorrer à catástrofe revolucionária/contra-revolucionária. A mobilização popular sobre o Congresso, na tentativa de produzir diálogos/acordos políticos, como se está insinuando no Chile, traz igualmente riscos, sobretudo, como no caso do Brasil, pela fragilidade do sistema partidário e das lideranças sociais comprometida com suas bases.

Todavia, se ao cabo, as eleições fracassarem em apresentar soluções efetivas aos problemas do país, seremos lançados num período de turbulências cujo resultado final pode, mais uma vez, ser a modernização conservadora. Neste caso, teríamos apenas perdido tempo, pois não existe mais espaço para o desenvolvimento sem a superação do hiato que separa o Estado da nação e, assim, mantém o subdesenvolvimento – no qual a corrupção institucionalizada constitui o principal calcanhar de Aquiles.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR, Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.

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